O braço direito formou um arco e o punho foi parar nas costas. Veio o impulso e ele abriu a mão, deixando saltar uma medalha. E então deslumbrou o mar com os olhos de menino, cantou os derradeiros versos enquanto seu lamento caia por sobre o rosto, fazendo líquida a maresia daquela última tarde de verão.
Havia mais de dez anos que estavam juntos. Durante alguns estiveram agarrados pelo pescoço. Noutros pelo pulso, ou mesmo pela lembrança guardada em uma caixa vermelha cheia de tranqueiras, de um passado ora quimérico, ora real.
Aquele pingente de metal era como uma gema milagrosa. Tinha dupla face. Em um lado a inscrição de uma jangada. Do outro, o desenho preferido do garoto que vivia com a cabeça no espaço: a cintura da constelação do equador celeste Órion, com as estrelas Alnitak, Alnilam e Mintaka – as Três Marias.
Aquele garoto não tinha nada de mais. Nenhum desenho gravado no corpo, nenhum jeito engraçado, nenhum trato com as brincadeiras de criança. Tinha um brilho no olho, mas só sua mãe conseguia enxergar. Ela também sabia disso e se sentia cada vez mais incomodada.
Para sair de casa o menino percorria um ritual. Estava sempre vestido de modo a tentar destacar o que não existia no corpo franzino. De quando em vez uma pulseira dourada ou uma corrente com um crucifixo pendurado. Assim parecia mais com outros da mesma idade e que sempre recebiam qualquer elogio, como trocados no semáforo.
Numa viagem à Recife, parou em frente a uma vitrine de loja. Puxou a mãe pelo braço e lhe disse: essa é minha medalha da sorte. Saiu de lá com ela pendurada em um rabo de rato de prata. O pingente em forma de gota não tinha a opacidade dos anos gastos, parecia refletir a exuberância do garoto.
Depois de tanto tempo a relação dos dois era mais que simples simbologia. Se passava pro um aperreio era só apertar, se fechando como dedos. Por isso foi tão difícil abrir a mão naquela hora. Mesmo ele já sendo um homem feito, chorou feito menino. Quiçá daquele gesto nasça uma nova alegria.
É saber que o oceano é imenso. Muito maior que aquele punhado de sonhos. Mas ainda que tão profundo, o mar terá mais uma desimportância na sua coleção de tesouros naufragados.
domingo, 14 de dezembro de 2008
terça-feira, 2 de dezembro de 2008
Vc tá on?
O modo é informal e a gente sempre começa um papo mais ou menos assim. Eu vivo me escondendo no MSN – essa revelação pode inclusive me render alguma encrenca, mas fiz comigo mesmo o juramento de não mentir ao menos aqui no blog. O Luis já sabe disso. A gente se conheceu na net mesmo, visitando o endereço um do outro. Eu escrevo bobagens e ele é letrado e fala sobre cultura. Mas mesmo com tantas diferenças a gente se entende.
Nunca me identifiquei muito com relacionamentos através de meios modernos de comunicação eletrônica. Até já escrevi isso há uns quatro anos, quando descobri que havia 100 dias que uma amiga que mora perto de mim, em Natal, namorava um cara que vivia em Goiânia e ela nunca tinha visto pessoalmente.
Era um transtorno encontrar e tentar estabelecer um diálogo com minha amiga. O celular dela não parava de tocar. Um som chato que significava mais um SMS chegando – e saindo logo em seguida, evidentemente. Mas não bastasse isso, os namorados jantavam juntos, em frente ao computador. Dividiam o mesmo rótulo do vinho e marca do yogurt de sobremesa. O cardápio invariavelmente era uma sopa instantânea de cenoura com erva doce. Eles acrescentavam azeite, limão e pimenta do reino. Foi assim até que os envelopes começaram a sumir das prateleiras do supermercado.
Ela, que teve usurpado o direito de permanecer em regime, tratou de resolver isso. Mandou um e-mail pro serviço de atendimento ao consumidor do fabricante da sopa. E recebeu em casa um cesta com vários outros sabores e a sugestão de que experimentassem as novidades. Aquele, infelizmente, tinha saído de linha.
Tive de ouvir muitas histórias desses dois. Por um bom tempo, inclusive. Quando acabou eu nem fiquei ciente do motivo, mas pelo que me consta eles nem chegaram a se encontrar. Difícil nisso tudo é dizer que não deu certo. O sorriso que ela sempre carregava era sinal de felicidade. E qualquer um conseguia ver. Eu nunca pequei por recriminar aquela relação, mesmo me causando certa estranheza.
Meu delay era de alguns anos. Há pouco comecei a entender melhor que as pessoas buscam conhecer outras pela rede mundial de computadores. Talvez sejam tímidas pra uma primeira conversa ao vivo. Talvez tenham preguiça de sair de casa sem saber se o cara tem algum cacuete como piscar os olhos repetidas vezes – isso me aflige um pouco.
Ainda não consigo ser vanguardista e achar normal alguém se produzir inteiro para ficar em frente a uma máquina com uma micro-câmera ligada, tentando seduzir outro. Mas não vou me apressar e dizer que nunca copiarei.
Eu ando fazendo amigos pela internet. E acho isso bacana. Claro que os laços só se estreitam quando a gente conhece, aperta a mão, abraça, quando existe tato, enfim. Dia desses, numa viagem, fui bater na cidade onde mora o Luis. Nós nunca tínhamos olhado no olho. Só comentávamos um no blog do outro e havia compartilhamento de outros textos e gostos.
Até que a gente se viu. E só se viu um dia. Mas que durou o dia inteiro. E agora parece que as afinidades aumentaram. Aliás, preciso dizer uma coisa em off, baixinho. Luis, vc tá aí?
Nunca me identifiquei muito com relacionamentos através de meios modernos de comunicação eletrônica. Até já escrevi isso há uns quatro anos, quando descobri que havia 100 dias que uma amiga que mora perto de mim, em Natal, namorava um cara que vivia em Goiânia e ela nunca tinha visto pessoalmente.
Era um transtorno encontrar e tentar estabelecer um diálogo com minha amiga. O celular dela não parava de tocar. Um som chato que significava mais um SMS chegando – e saindo logo em seguida, evidentemente. Mas não bastasse isso, os namorados jantavam juntos, em frente ao computador. Dividiam o mesmo rótulo do vinho e marca do yogurt de sobremesa. O cardápio invariavelmente era uma sopa instantânea de cenoura com erva doce. Eles acrescentavam azeite, limão e pimenta do reino. Foi assim até que os envelopes começaram a sumir das prateleiras do supermercado.
Ela, que teve usurpado o direito de permanecer em regime, tratou de resolver isso. Mandou um e-mail pro serviço de atendimento ao consumidor do fabricante da sopa. E recebeu em casa um cesta com vários outros sabores e a sugestão de que experimentassem as novidades. Aquele, infelizmente, tinha saído de linha.
Tive de ouvir muitas histórias desses dois. Por um bom tempo, inclusive. Quando acabou eu nem fiquei ciente do motivo, mas pelo que me consta eles nem chegaram a se encontrar. Difícil nisso tudo é dizer que não deu certo. O sorriso que ela sempre carregava era sinal de felicidade. E qualquer um conseguia ver. Eu nunca pequei por recriminar aquela relação, mesmo me causando certa estranheza.
Meu delay era de alguns anos. Há pouco comecei a entender melhor que as pessoas buscam conhecer outras pela rede mundial de computadores. Talvez sejam tímidas pra uma primeira conversa ao vivo. Talvez tenham preguiça de sair de casa sem saber se o cara tem algum cacuete como piscar os olhos repetidas vezes – isso me aflige um pouco.
Ainda não consigo ser vanguardista e achar normal alguém se produzir inteiro para ficar em frente a uma máquina com uma micro-câmera ligada, tentando seduzir outro. Mas não vou me apressar e dizer que nunca copiarei.
Eu ando fazendo amigos pela internet. E acho isso bacana. Claro que os laços só se estreitam quando a gente conhece, aperta a mão, abraça, quando existe tato, enfim. Dia desses, numa viagem, fui bater na cidade onde mora o Luis. Nós nunca tínhamos olhado no olho. Só comentávamos um no blog do outro e havia compartilhamento de outros textos e gostos.
Até que a gente se viu. E só se viu um dia. Mas que durou o dia inteiro. E agora parece que as afinidades aumentaram. Aliás, preciso dizer uma coisa em off, baixinho. Luis, vc tá aí?
quarta-feira, 26 de novembro de 2008
Futura impassibilidade
Parece que falta opção. Folga no meio da semana e tem gente que se perde, achando que não há nada pra fazer. Rotina louca essa que cega as pessoas. Enfim. Digo isso porque ouvi um relato de algumas horas de ócio que foram aproveitadas numa barraca à beira mar. Um amigo meu que disse.
Era segunda-feira. Uma família, pelos traços e sotaque, provavelmente de fora, curtia a praia. Um casal na melhor idade, duas filhas adultas cada uma com uma criança. Ou seja, três gerações. Uma das mulheres tinha tatuado o nome da filha nas costas. Alicia era como se chamava.
A garota e o priminho tinham um espaço delimitado por uma linha imaginária que corria paralela a uma cadeira reclinada. Mas pela tábua de marés aquela era hora do mar encher outra vez. E as ondas por vezes passavam daquele ponto, derrubavam e carregavam as crianças por meio metro.
Quando acontecia, a mãe de Alicia imediatamente gritava: venha já para o banquinho! Era um banco alto que estava colocado entre a cadeira de sol dela e a da irmã. A pequena ficava ali por cerca de dois minutos até que era liberada outra vez para continuar a farra da areia. Em alguns momentos o mesmo aconteceu com o menino. Um pouco menos. Quiçá porque ele fosse mais durinho. Parecia ter uns seis anos. Um ou dois a mais que ela.
Na imaginação dos outros, sendo tão metódicas, parecia que aquelas mulheres participaram de alguma das cinco temporadas do programa da Super Nanny ou eram jogadoras de handball e aplicavam a punição dos dois minutos nos filhos – a que durante a partida o jogador cumpre no banco por ter feito uma falta desnecessária ou por causa de uma substituição incorreta.
Do lado de fora, sem ter visto a cena, fico imaginando que há coisa pior do que não saber aproveitar quando a semana pode começar na terça-feira. É ter intransigência no educar. Filhos aprendem a ficar quietos e crescem. Talvez terminem tendo a fleuma elegante da inércia e só descubram o sexo após os 30. Pais cruéis!
Era segunda-feira. Uma família, pelos traços e sotaque, provavelmente de fora, curtia a praia. Um casal na melhor idade, duas filhas adultas cada uma com uma criança. Ou seja, três gerações. Uma das mulheres tinha tatuado o nome da filha nas costas. Alicia era como se chamava.
A garota e o priminho tinham um espaço delimitado por uma linha imaginária que corria paralela a uma cadeira reclinada. Mas pela tábua de marés aquela era hora do mar encher outra vez. E as ondas por vezes passavam daquele ponto, derrubavam e carregavam as crianças por meio metro.
Quando acontecia, a mãe de Alicia imediatamente gritava: venha já para o banquinho! Era um banco alto que estava colocado entre a cadeira de sol dela e a da irmã. A pequena ficava ali por cerca de dois minutos até que era liberada outra vez para continuar a farra da areia. Em alguns momentos o mesmo aconteceu com o menino. Um pouco menos. Quiçá porque ele fosse mais durinho. Parecia ter uns seis anos. Um ou dois a mais que ela.
Na imaginação dos outros, sendo tão metódicas, parecia que aquelas mulheres participaram de alguma das cinco temporadas do programa da Super Nanny ou eram jogadoras de handball e aplicavam a punição dos dois minutos nos filhos – a que durante a partida o jogador cumpre no banco por ter feito uma falta desnecessária ou por causa de uma substituição incorreta.
Do lado de fora, sem ter visto a cena, fico imaginando que há coisa pior do que não saber aproveitar quando a semana pode começar na terça-feira. É ter intransigência no educar. Filhos aprendem a ficar quietos e crescem. Talvez terminem tendo a fleuma elegante da inércia e só descubram o sexo após os 30. Pais cruéis!
quinta-feira, 23 de outubro de 2008
Eu digo, tu reclamas, nós nos apartamos
Estou ocupado. Sem tempo a perder justificando a razão que me leva a escrever. Muitas vezes sobre mim, os que me cercam, sobre minhocas, o céu limpo, os dias de chuva, as impressões do trabalho, a gravidade deformando os corpos, as músicas que não ouço mais e as embalagens de CDs que estão empoeiradas.
Tornar verbo essa miudezas não é uma simples ocupação. A ação me ajuda a entender melhor e a explicar quando as palavras não podem ser ditas pessoalmente. Por isso o único que espero como resposta é que tentem entender. Não sendo possível, que ao menos calem. Seria uma forma de respeito.
Outro dia o meu telefone tocou. Era um número conhecido, mas que já não tinha foto piscando ao lado. Só um nome que soa mal pra minha estrutura de vida. Estava guardado por um desses acasos, que não detalham antecipadamente quem a gente vai encontrar e os desencadeamentos.
Afrontando a minha ideologia, ouvi pacientemente o pedido para que retirasse um texto antigo. Com o apelo, senti do outro lado da linha o medo. E mesmo achando uma agressão, considerei o pedido legítimo.
A gente de quando em vez se agride pensando no outro. Os problemas não eram meus. Pouco me dá se alguém começa ou termina uma relação escrevendo. Ou se faz suas queixas literariamente ou apenas de modo introspectivo. E trata na análise ou desconta no próximo.
Todas as histórias têm princípio, meio, registros, brigas, fotografias guardadas, entrega e incompatibilidades, uma canção marcante e final. Cedo ou outro dia. Ficam as impressões e, em alguns casos, vídeos que mostram o desejo vivo e ajudam a conter os impulsos.
Tornar verbo essa miudezas não é uma simples ocupação. A ação me ajuda a entender melhor e a explicar quando as palavras não podem ser ditas pessoalmente. Por isso o único que espero como resposta é que tentem entender. Não sendo possível, que ao menos calem. Seria uma forma de respeito.
Outro dia o meu telefone tocou. Era um número conhecido, mas que já não tinha foto piscando ao lado. Só um nome que soa mal pra minha estrutura de vida. Estava guardado por um desses acasos, que não detalham antecipadamente quem a gente vai encontrar e os desencadeamentos.
Afrontando a minha ideologia, ouvi pacientemente o pedido para que retirasse um texto antigo. Com o apelo, senti do outro lado da linha o medo. E mesmo achando uma agressão, considerei o pedido legítimo.
A gente de quando em vez se agride pensando no outro. Os problemas não eram meus. Pouco me dá se alguém começa ou termina uma relação escrevendo. Ou se faz suas queixas literariamente ou apenas de modo introspectivo. E trata na análise ou desconta no próximo.
Todas as histórias têm princípio, meio, registros, brigas, fotografias guardadas, entrega e incompatibilidades, uma canção marcante e final. Cedo ou outro dia. Ficam as impressões e, em alguns casos, vídeos que mostram o desejo vivo e ajudam a conter os impulsos.
quarta-feira, 22 de outubro de 2008
Atualizações
A inutilidade dos meios de comunicação já não me aflige.
Olho incólume para o celular e o computador jogados no sofá da sala.
Saio pra cozinha pra preparar um café.
Pensar ter ouvido o toque do telefone é outra das coisas ficaram no antes.
No agora foram abertas as portas da fantasia.
É que do lado da lá habitam infindas possibilidades.
E numa delas estou encontrando uma nova fonte de inspiração.
Olho incólume para o celular e o computador jogados no sofá da sala.
Saio pra cozinha pra preparar um café.
Pensar ter ouvido o toque do telefone é outra das coisas ficaram no antes.
No agora foram abertas as portas da fantasia.
É que do lado da lá habitam infindas possibilidades.
E numa delas estou encontrando uma nova fonte de inspiração.
sábado, 23 de agosto de 2008
O que me toca
Gosto de muitas coisas no meu ofício. Mas quiçá a melhor delas seja a oportunidade de conhecer e conversar com pessoas diferentes e contar suas histórias. Em época de eleições, com políticos e pseudo-propostas em cena, minha equipe tem preferido conhecer o outro lado, o do eleitor.
Laila estava no Instituto de Reabilitação de Cegos do Rio Grande do Norte. É professora da quarta série de uma sala com quatro alunos de idades variadas. Ela tinha passado uma atividade e estava quieta no birô quando entrei falando um pouco mais alto que de costume, como se não soubesse que eles pela ausência de um sentido têm a audição mais sensível.
Depois de uma apresentação rápida comecei a perguntar, e a receptividade era evidente. Aos 29 anos ela pareceu uma jovem muito serena. Branca, estatura mediana, articulada com as palavras, de gestos contidos, cabelo curto partido pro lado esquerdo que cobria parcialmente um buraco na cabeça. Marca da cirurgia para retirada de um tumor no cérebro há quatro anos. Foi depois desse procedimento que veio a seqüela e ao redor tudo ficou escuro.
Hoje ela consegue ver alguns vultos, dependendo da luminosidade do ambiente. E tem outro diferencial: sabe ler em braile, o que não acontecia quando das últimas eleições municipais. Naquele ano a mãe ajudou conduzindo até a seção e indicando onde estavam os números. E ela votou.
A participação no pleito era o objetivo da minha reportagem, que foi motivada pelo Tribunal Regional Eleitoral que baixou a resolução 15/2008, disponibilizando uma linha telefônica na Corregedoria de Justiça, a fim de facilitar a solicitação de pessoas com dificuldades de locomoção e idosos para mudar do local de votação. É um adendo a lei eleitoral, que já previa essa transferência, mas que antes só podia ser feita via cartório.
Laila já passou por um período de adaptação, duro mesmo pra quem tem bom astral. Agora sabe se virar sozinha. Usa de quando em vez uma bengala quando não conhece o espaço onde está. E assim não deixa de participar de nada. Eu gosto de gente. E tê-la conhecido foi uma beleza.
Mas naquela mesma tarde também bati um papo com o presidente da instituição, cego de nascença. Ele começou a falar e no meio do pensamento truncado de tantos comparativos soltou uma palavra que me causou estranheza: videntes.
Ele se referia as pessoas que possuem o sentido da visão. Eu desliguei daquela entrevista imediatamente e pensei que não me sinto assim. Vidente no meu pequeno enteder é uma pessoa que consegue ter premunições.
Depois perguntei alguma coisa sem sentido, gaguejando em dois momentos, na tentativa de disfarçar o tempo em que divaguei. Mas saí de lá convencido de que a gente vê pouco, com ou sem deficiência. O vidente nada mais é que um termo usado por mim e por ele pra se referir a alguém que enxerga mais que nós. A idéia é a mesma.
Furos em um papel só dizem que ele não serve pra escrever. Mas pra Laila e tantas outras pessoas aquilo é instrumento de comunicação tal como minha caneta, o meu computador. Da mesma maneira que os cegos gostariam de enxergar com os olhos, eu, que assumidamente também gosto de tato, queria ver com os dedos. E tocar da pele ao pensamento.
Laila estava no Instituto de Reabilitação de Cegos do Rio Grande do Norte. É professora da quarta série de uma sala com quatro alunos de idades variadas. Ela tinha passado uma atividade e estava quieta no birô quando entrei falando um pouco mais alto que de costume, como se não soubesse que eles pela ausência de um sentido têm a audição mais sensível.
Depois de uma apresentação rápida comecei a perguntar, e a receptividade era evidente. Aos 29 anos ela pareceu uma jovem muito serena. Branca, estatura mediana, articulada com as palavras, de gestos contidos, cabelo curto partido pro lado esquerdo que cobria parcialmente um buraco na cabeça. Marca da cirurgia para retirada de um tumor no cérebro há quatro anos. Foi depois desse procedimento que veio a seqüela e ao redor tudo ficou escuro.
Hoje ela consegue ver alguns vultos, dependendo da luminosidade do ambiente. E tem outro diferencial: sabe ler em braile, o que não acontecia quando das últimas eleições municipais. Naquele ano a mãe ajudou conduzindo até a seção e indicando onde estavam os números. E ela votou.
A participação no pleito era o objetivo da minha reportagem, que foi motivada pelo Tribunal Regional Eleitoral que baixou a resolução 15/2008, disponibilizando uma linha telefônica na Corregedoria de Justiça, a fim de facilitar a solicitação de pessoas com dificuldades de locomoção e idosos para mudar do local de votação. É um adendo a lei eleitoral, que já previa essa transferência, mas que antes só podia ser feita via cartório.
Laila já passou por um período de adaptação, duro mesmo pra quem tem bom astral. Agora sabe se virar sozinha. Usa de quando em vez uma bengala quando não conhece o espaço onde está. E assim não deixa de participar de nada. Eu gosto de gente. E tê-la conhecido foi uma beleza.
Mas naquela mesma tarde também bati um papo com o presidente da instituição, cego de nascença. Ele começou a falar e no meio do pensamento truncado de tantos comparativos soltou uma palavra que me causou estranheza: videntes.
Ele se referia as pessoas que possuem o sentido da visão. Eu desliguei daquela entrevista imediatamente e pensei que não me sinto assim. Vidente no meu pequeno enteder é uma pessoa que consegue ter premunições.
Depois perguntei alguma coisa sem sentido, gaguejando em dois momentos, na tentativa de disfarçar o tempo em que divaguei. Mas saí de lá convencido de que a gente vê pouco, com ou sem deficiência. O vidente nada mais é que um termo usado por mim e por ele pra se referir a alguém que enxerga mais que nós. A idéia é a mesma.
Furos em um papel só dizem que ele não serve pra escrever. Mas pra Laila e tantas outras pessoas aquilo é instrumento de comunicação tal como minha caneta, o meu computador. Da mesma maneira que os cegos gostariam de enxergar com os olhos, eu, que assumidamente também gosto de tato, queria ver com os dedos. E tocar da pele ao pensamento.
terça-feira, 12 de agosto de 2008
Hora do cabriolar das minhocas
Quando o tempo fecha time que ta perdendo no campeonato não pode parar, quer recuperação. O técnico se veste com uma capa de chuva e põe o elenco em campo, com o gramado pesado, para mais um coletivo.
Quando o tempo fecha é que os pássaros gastam mais tempo em seus ninhos, entrelaçados com criterioso zelo. As águas encharcam as penas e fazem do voar uma tarefa difícil. Sair até para conseguir o alimento é risco de vida.
Quando o tempo fecha em agosto a chuva é de vento e o mar fica revolto. O sonho oceânico se turva na imensidão. Os surfistas aproveitam as ondas crescidas. A paisagem litorânea se faz gris e o colorido é salvo por arco-íris que surgem de algum lugar longínquo.
Quando o tempo fecha as vídeolocadoras ficam cheias e a farta matéria prima das pipocas some das prateleiras dos supermercados. É resultado da simples associação. Noite fria pede filme antigo mais deleite de plumas brancas com gosto de manteiga.
Tempo chuvoso também incita atrito. E os corpos se procuram, se relam, ajudam. O aquecer é uma ação involuntária do animal instinto de sobrevivência. O homem-bicho também se programa. No inverno a caça tem de estar por perto, pra não precisar ir à rua.
Quando o tempo fecha a natureza desafia os carros. Nas estradas abertas na mata, poças de lama. Nas ruas pavimentadas, buracos. E os motoristas buzinam num reclamar perturbador pra quem está farto de ouvir moléstias alheias.
Quando o tempo fecha os guarda-chuvas se abrem. As dispensas se enchem, os computadores esquentam mais que o de costume, o cio das gatas atraem menos pretendentes, dá preguiça de sair pra pagar contas e vontade de pintar.
Tempo molhado também atrasa as construções sólidas. Água fura qualquer aspereza. E quem precisa reconstruir usa do improviso. Precisa aprender a cavar feito ser hermafrodita. De nada valem as inchadas se no arar e no plantar falta minhoca.
Quando o tempo fecha é que os pássaros gastam mais tempo em seus ninhos, entrelaçados com criterioso zelo. As águas encharcam as penas e fazem do voar uma tarefa difícil. Sair até para conseguir o alimento é risco de vida.
Quando o tempo fecha em agosto a chuva é de vento e o mar fica revolto. O sonho oceânico se turva na imensidão. Os surfistas aproveitam as ondas crescidas. A paisagem litorânea se faz gris e o colorido é salvo por arco-íris que surgem de algum lugar longínquo.
Quando o tempo fecha as vídeolocadoras ficam cheias e a farta matéria prima das pipocas some das prateleiras dos supermercados. É resultado da simples associação. Noite fria pede filme antigo mais deleite de plumas brancas com gosto de manteiga.
Tempo chuvoso também incita atrito. E os corpos se procuram, se relam, ajudam. O aquecer é uma ação involuntária do animal instinto de sobrevivência. O homem-bicho também se programa. No inverno a caça tem de estar por perto, pra não precisar ir à rua.
Quando o tempo fecha a natureza desafia os carros. Nas estradas abertas na mata, poças de lama. Nas ruas pavimentadas, buracos. E os motoristas buzinam num reclamar perturbador pra quem está farto de ouvir moléstias alheias.
Quando o tempo fecha os guarda-chuvas se abrem. As dispensas se enchem, os computadores esquentam mais que o de costume, o cio das gatas atraem menos pretendentes, dá preguiça de sair pra pagar contas e vontade de pintar.
Tempo molhado também atrasa as construções sólidas. Água fura qualquer aspereza. E quem precisa reconstruir usa do improviso. Precisa aprender a cavar feito ser hermafrodita. De nada valem as inchadas se no arar e no plantar falta minhoca.
sexta-feira, 8 de agosto de 2008
Conflito
Pela manhã me perguntaram sobre com o que eu tinha sonhado. O questionamento não veio de um companheiro de trabalho que costuma indagar a mesma coisa pra em seguida jogar no bicho. Despertei sem saber o que meu inconsciente confabulou durante o sono, mas hoje meu maior desejo é não ter dúvidas.
Das certezas, só que isso não é possível em tempo algum. Ainda assim, persigo o ócio, a segurança, a rotina, o verbo acreditar. Minha fé é como um café em pó. Precisa de de-leite pra não amargar a boca. E tem outra coisa: eu farso o que quiser.
Das certezas, só que isso não é possível em tempo algum. Ainda assim, persigo o ócio, a segurança, a rotina, o verbo acreditar. Minha fé é como um café em pó. Precisa de de-leite pra não amargar a boca. E tem outra coisa: eu farso o que quiser.
Aliviando tensões (massagem é coisa de frutinha!)
Instrumento indispensável da vida moderna é o controle remoto. Em noites de impaciência e insônia o meu vem sendo usado mais que de costume. E foi numa dessa que comecei a trocar de canal até parar no Programa do Jô, no instante em que iria começar uma entrevista com a jornalista Fernanda Colavitti.
Apostei. Ela me pareceu ter um semblante bem comum, além de compartilharmos da mesma profissão e termos um blog. Era falar sobre o dela o motivo da entrevista. Sexo é o tema central da página. E até aí tudo muito convencional, já que é cada vez mais fácil encontrar o tal conteúdo para adultos nesse mundo virtual. Além do mais, as melhores entrevistas dele são com pessoas até então anônimas.
Mas logo no início do papo a gaja se mostrou atrativa. Ria de lado para parecer tímida, mesmo sendo notório que estava muito desencanada com todas as perguntas que penetravam, além de tudo, na sua intimidade. Sensacional é falar sobre isso sem nenhuma inibição. Melhor ainda é não ter a preocupação de dissociar a vida profissional da pessoal.
O blog da Fernanda é coorporativo. Está na página da revista Galileu, da Editora Globo. É isso mesmo. Ela tem o aval do chefe para pesquisar e falar sobre qualquer putaria e pleno horário de expediente, o que nós só fazemos na hora do cafezinho e em tom quase inaudível por receio de retaliação.
Falando em trabalho um dos trechos mais curiosos daquele papo foi o que motivou esse post. Desde março deste ano ela vem escrevendo e colecionando contatos. Um desses informantes passou o link da página de um grupo argentino denominado Los Fiesteros que surgiu nos anos 1990 com a proposta de trocar o chope do happy hour por sexo.
No início, eram seis pessoas que se conheceram num site de relacionamentos e marcaram outros prazeres pra depois das seis em um escritório no bairro de Villa Crespo. Os encontros aconteciam uma vez por mês sempre na última semana e mudavam de lugar, afinal explorar também novos ambientes sempre é bacana.
A cada edição eram convidados novos participantes, como nós fazemos naturalmente por aqui, chamando um amigo, um primo – qualquer pessoa menos o patrão – para uma mesa de bar. E logo aconteceu a primeira grande festa num chalé de dois andares com a presença de 110 pessoas.
Hoje tem tanta gente literalmente querendo entrar, que foi organizada uma página na internet para cadastrar todo mundo e informar através de newsletters onde acontecem as grandes surubas a cada 15 dias. Também foram estabelecidas divisões. Existem agora grupos mistos (com homens e mulheres) e grupos gays para homens acima de 18 anos, sem limite de idade e na faixa etária de 18 a 35 anos.
Durante aquela madrugada deitado no sofá ao meu lado só estava o celular. E foi nessa hora que eu descobri a importância da função escritório dele. Anotei os endereços dos sítios e entrei dias depois pra conferir.
Sobre impressões, aqui meus registros. Em tempos de tantas preocupações com doenças sexualmente transmissíveis vale lembrar que é bom ter prudência. Ela é prima-irmã da saúde. E não me venha com essa de que se pagando o equivalente a oito reais se tem direito a camisinha a noite inteira, além de armário pra roupas e uma bebida. Não deve ser fácil controlar um batalhão de gente de uma só vez. Ainda mais sentindo picos de tesão.
Sobre curiosidades, também digo. Há uma recomendação expressa para que ninguém seja deixado de lado e assim, como uma democracia, todos possam desfrutar. E o mais interessante é ler as regras. A sexta delas proíbe o uso dos banheiros para fins sexuais, justificando que no meio da galera sempre tem gente que precisa usar as dependências pra valer. Não vi qualquer tópico dispondo sobre o que fazer com outros fetiches. Logo, concluo que pode ser interessante pra os mais exibicionistas.
Nessas orgias acho que deve rolar um esquema mais pancadão, com direito a tapas e tudo mais. Imagine o que é encontrar um bando de gente estressada, que acabou de sair do trampo com todas as pressões de ter de bater metas!
Nunca ouvi dizer que exista algo parecido por aqui, mas Los Fiesteros informam que a prática já foi espalhada para outros países, inclusive o Brasil. Na minha cidade, movimentos de outras culturas, até mais amenas e limpinhas tem sido vistos com um tanto de estranheza. Um deles foi proposto por um empresário da hotelaria local, Eduardo Bagnoli. Ele sugere que seja criado um local para prática do naturismo, numa praia ao lado de Ponta Negra, onde só é possível chegar com a ajuda de embarcações de pesca artesanal.
Hilário seria ver os pescadores transportando peladões pra lá e pra cá. Diz que isso poderia atrair mais turista. Na página do outro grupo na web se incita o turismo sexual, e por essas bandas há outdoors combatendo a prática da gringalhada. Difícil é saber quem está na mão certa, dos novos tempos. Mercado pra tudo já ficou claro que existe.
P.S. 1: Para quem achar curioso ou excitante, fica o endereço. http://www.grupolosfiesteros.com/
P.S. 2: Aviso aos navegantes que não existe nenhum motivo especial para esse texto ter sido escrito em plena sexta-feira.
Apostei. Ela me pareceu ter um semblante bem comum, além de compartilharmos da mesma profissão e termos um blog. Era falar sobre o dela o motivo da entrevista. Sexo é o tema central da página. E até aí tudo muito convencional, já que é cada vez mais fácil encontrar o tal conteúdo para adultos nesse mundo virtual. Além do mais, as melhores entrevistas dele são com pessoas até então anônimas.
Mas logo no início do papo a gaja se mostrou atrativa. Ria de lado para parecer tímida, mesmo sendo notório que estava muito desencanada com todas as perguntas que penetravam, além de tudo, na sua intimidade. Sensacional é falar sobre isso sem nenhuma inibição. Melhor ainda é não ter a preocupação de dissociar a vida profissional da pessoal.
O blog da Fernanda é coorporativo. Está na página da revista Galileu, da Editora Globo. É isso mesmo. Ela tem o aval do chefe para pesquisar e falar sobre qualquer putaria e pleno horário de expediente, o que nós só fazemos na hora do cafezinho e em tom quase inaudível por receio de retaliação.
Falando em trabalho um dos trechos mais curiosos daquele papo foi o que motivou esse post. Desde março deste ano ela vem escrevendo e colecionando contatos. Um desses informantes passou o link da página de um grupo argentino denominado Los Fiesteros que surgiu nos anos 1990 com a proposta de trocar o chope do happy hour por sexo.
No início, eram seis pessoas que se conheceram num site de relacionamentos e marcaram outros prazeres pra depois das seis em um escritório no bairro de Villa Crespo. Os encontros aconteciam uma vez por mês sempre na última semana e mudavam de lugar, afinal explorar também novos ambientes sempre é bacana.
A cada edição eram convidados novos participantes, como nós fazemos naturalmente por aqui, chamando um amigo, um primo – qualquer pessoa menos o patrão – para uma mesa de bar. E logo aconteceu a primeira grande festa num chalé de dois andares com a presença de 110 pessoas.
Hoje tem tanta gente literalmente querendo entrar, que foi organizada uma página na internet para cadastrar todo mundo e informar através de newsletters onde acontecem as grandes surubas a cada 15 dias. Também foram estabelecidas divisões. Existem agora grupos mistos (com homens e mulheres) e grupos gays para homens acima de 18 anos, sem limite de idade e na faixa etária de 18 a 35 anos.
Durante aquela madrugada deitado no sofá ao meu lado só estava o celular. E foi nessa hora que eu descobri a importância da função escritório dele. Anotei os endereços dos sítios e entrei dias depois pra conferir.
Sobre impressões, aqui meus registros. Em tempos de tantas preocupações com doenças sexualmente transmissíveis vale lembrar que é bom ter prudência. Ela é prima-irmã da saúde. E não me venha com essa de que se pagando o equivalente a oito reais se tem direito a camisinha a noite inteira, além de armário pra roupas e uma bebida. Não deve ser fácil controlar um batalhão de gente de uma só vez. Ainda mais sentindo picos de tesão.
Sobre curiosidades, também digo. Há uma recomendação expressa para que ninguém seja deixado de lado e assim, como uma democracia, todos possam desfrutar. E o mais interessante é ler as regras. A sexta delas proíbe o uso dos banheiros para fins sexuais, justificando que no meio da galera sempre tem gente que precisa usar as dependências pra valer. Não vi qualquer tópico dispondo sobre o que fazer com outros fetiches. Logo, concluo que pode ser interessante pra os mais exibicionistas.
Nessas orgias acho que deve rolar um esquema mais pancadão, com direito a tapas e tudo mais. Imagine o que é encontrar um bando de gente estressada, que acabou de sair do trampo com todas as pressões de ter de bater metas!
Nunca ouvi dizer que exista algo parecido por aqui, mas Los Fiesteros informam que a prática já foi espalhada para outros países, inclusive o Brasil. Na minha cidade, movimentos de outras culturas, até mais amenas e limpinhas tem sido vistos com um tanto de estranheza. Um deles foi proposto por um empresário da hotelaria local, Eduardo Bagnoli. Ele sugere que seja criado um local para prática do naturismo, numa praia ao lado de Ponta Negra, onde só é possível chegar com a ajuda de embarcações de pesca artesanal.
Hilário seria ver os pescadores transportando peladões pra lá e pra cá. Diz que isso poderia atrair mais turista. Na página do outro grupo na web se incita o turismo sexual, e por essas bandas há outdoors combatendo a prática da gringalhada. Difícil é saber quem está na mão certa, dos novos tempos. Mercado pra tudo já ficou claro que existe.
P.S. 1: Para quem achar curioso ou excitante, fica o endereço. http://www.grupolosfiesteros.com/
P.S. 2: Aviso aos navegantes que não existe nenhum motivo especial para esse texto ter sido escrito em plena sexta-feira.
segunda-feira, 4 de agosto de 2008
A minha área verde (ou sobre a felicidade)
Para minha mãe
É um prédio todo azul. Com tons claros e mais escuros. Todo azul. Eu passo diariamente e fico olhando. Não é pela imponência da arquitetura, nem pela parede de vidro que deve revelar uma bela paisagem – já que é um dos pontos mais altos da cidade. Ao lado da principal sacada há um jardim. E cada andar guarda uma surpresa paisagística. Plantas exóticas, todas altas. Eu, debaixo, consigo ver.
Era criança quando minha mãe falou pela primeira vez que eu tinha uma séria atração pelo inacessível. Mais tarde eu morava na Espanha e ela me mandou um cd que na faixa 14 tinha uma música que ficaria bem melhor na sua voz. “Mesmo quando ele consegue o que ele quis, quando tem já não quer. Acha alguma coisa nova na TV, o que não pode ter, e deixa de gostar, larga mão do que ele já tem. Passa então a amar tudo aquilo que não ganhou”.
Naquela época, longe dos olhos dela, eu não tinha muita coisa palpável. Só um som portátil, duas malas com roupas, uma máquina fotográfica, um computador, um celular pré-pago, mais umas tranqueiras e um quitinete alugado. E tudo isso tinha muito valor. No meu quarto, por exemplo, as paredes eram cheias de fotografias dos mais chegados e bilhetes dos poucos que fui conhecendo nas aulas, nas ruas, nos cafés. Os bens físicos protegiam meus tesouros emocionais.
Escrevendo por ofício ou prazer, sinto nostalgia. Parece uma compulsão, como se fosse proteger a vida de alguém. A minha talvez. E naqueles tempos eu exercitava a palavra em dois idiomas. E ganhava responsabilidade, senso prático e um pouco dinheiro nuns trabalhos temporários. Só não consegui ter apego as coisas materiais. Saí de lá deixando as peças de frio e os discos de mpb.
Em momentos é preciso escolher. Normalmente minha inclinação é tomar decisões quando a saudade açoita. Eu me sentia uma pedra remota, um corpo fugitivo. No último sopro de estrelas ganhei uma festa de despedidas, numa boate que eu gostava, mas não freqüentava muito.
Por aqui, passei uns dias na casa da minha família. Há jardins, umas plantas bonitas, de idade avançada e que seguiam crescendo. Estranho era ver que uma ala nova de quartos ocupava o nascedouro de um xique-xique que atingiu mais de dez metros de altura e anunciava as chuvas. Era o orgulho do meu pai.
Quando tinham passado três meses dali fui para meu primeiro apartamento. Sem varanda. Comprei uma ráfia para a sala e uns mini cactos para o banheiro. Não tinham espinhos. O cachepô não combinava muito com a decoração rústica. Era de vidro, grande como um aquário de sala de espera de dentista. A diarista colocava água duas vezes por semana e eu batia papo. Fiz tudo certo, mas ela não. E a planta morreu por excesso de cuidado, com o caule todo úmido, quase podre.
Teve também uma vez que levei pra lá dois vasos e larguei na janela pra pegar uma brisa. Os ventos de agosto derrubaram um que atravessou a janela do quinto andar e quase cai sobre a mala do carro novo do vizinho.
O cinza das ruas não me parece ter um ar muito simpático. Até finda o ar quando estou ao redor de muito concreto. Das reminiscências da minha infância eu trago o apego pelo verde. E quero ter vida em todos os cantos pra minimizar a dor dos azulejos, dos objetos marcados por farsas.
Para um apartamento novo, um novo projeto, foram adquiridas muitas plantas. No corredor, ao lado da mesa de jantar, da televisão, nos banheiros todos. Em tudo quanto é lugar tem. Na entrada, uma árvore da felicidade. Claro que é prudente regar, mas dizem que ela cresce por influência das energias boas. A minha passou um tempo bem bonita até que começou a definhar. Agora, apanho umas folhas secas do chão quase que diariamente. Por isso hoje resolvi tirar da entrada. No corredor não consigo controlar quem chega ou sai.
Deve ser um olhar de admiração que lanço pelas manhãs quando passo por aquele prédio e o mundo só parece ter sentido na vertical.
É um prédio todo azul. Com tons claros e mais escuros. Todo azul. Eu passo diariamente e fico olhando. Não é pela imponência da arquitetura, nem pela parede de vidro que deve revelar uma bela paisagem – já que é um dos pontos mais altos da cidade. Ao lado da principal sacada há um jardim. E cada andar guarda uma surpresa paisagística. Plantas exóticas, todas altas. Eu, debaixo, consigo ver.
Era criança quando minha mãe falou pela primeira vez que eu tinha uma séria atração pelo inacessível. Mais tarde eu morava na Espanha e ela me mandou um cd que na faixa 14 tinha uma música que ficaria bem melhor na sua voz. “Mesmo quando ele consegue o que ele quis, quando tem já não quer. Acha alguma coisa nova na TV, o que não pode ter, e deixa de gostar, larga mão do que ele já tem. Passa então a amar tudo aquilo que não ganhou”.
Naquela época, longe dos olhos dela, eu não tinha muita coisa palpável. Só um som portátil, duas malas com roupas, uma máquina fotográfica, um computador, um celular pré-pago, mais umas tranqueiras e um quitinete alugado. E tudo isso tinha muito valor. No meu quarto, por exemplo, as paredes eram cheias de fotografias dos mais chegados e bilhetes dos poucos que fui conhecendo nas aulas, nas ruas, nos cafés. Os bens físicos protegiam meus tesouros emocionais.
Escrevendo por ofício ou prazer, sinto nostalgia. Parece uma compulsão, como se fosse proteger a vida de alguém. A minha talvez. E naqueles tempos eu exercitava a palavra em dois idiomas. E ganhava responsabilidade, senso prático e um pouco dinheiro nuns trabalhos temporários. Só não consegui ter apego as coisas materiais. Saí de lá deixando as peças de frio e os discos de mpb.
Em momentos é preciso escolher. Normalmente minha inclinação é tomar decisões quando a saudade açoita. Eu me sentia uma pedra remota, um corpo fugitivo. No último sopro de estrelas ganhei uma festa de despedidas, numa boate que eu gostava, mas não freqüentava muito.
Por aqui, passei uns dias na casa da minha família. Há jardins, umas plantas bonitas, de idade avançada e que seguiam crescendo. Estranho era ver que uma ala nova de quartos ocupava o nascedouro de um xique-xique que atingiu mais de dez metros de altura e anunciava as chuvas. Era o orgulho do meu pai.
Quando tinham passado três meses dali fui para meu primeiro apartamento. Sem varanda. Comprei uma ráfia para a sala e uns mini cactos para o banheiro. Não tinham espinhos. O cachepô não combinava muito com a decoração rústica. Era de vidro, grande como um aquário de sala de espera de dentista. A diarista colocava água duas vezes por semana e eu batia papo. Fiz tudo certo, mas ela não. E a planta morreu por excesso de cuidado, com o caule todo úmido, quase podre.
Teve também uma vez que levei pra lá dois vasos e larguei na janela pra pegar uma brisa. Os ventos de agosto derrubaram um que atravessou a janela do quinto andar e quase cai sobre a mala do carro novo do vizinho.
O cinza das ruas não me parece ter um ar muito simpático. Até finda o ar quando estou ao redor de muito concreto. Das reminiscências da minha infância eu trago o apego pelo verde. E quero ter vida em todos os cantos pra minimizar a dor dos azulejos, dos objetos marcados por farsas.
Para um apartamento novo, um novo projeto, foram adquiridas muitas plantas. No corredor, ao lado da mesa de jantar, da televisão, nos banheiros todos. Em tudo quanto é lugar tem. Na entrada, uma árvore da felicidade. Claro que é prudente regar, mas dizem que ela cresce por influência das energias boas. A minha passou um tempo bem bonita até que começou a definhar. Agora, apanho umas folhas secas do chão quase que diariamente. Por isso hoje resolvi tirar da entrada. No corredor não consigo controlar quem chega ou sai.
Deve ser um olhar de admiração que lanço pelas manhãs quando passo por aquele prédio e o mundo só parece ter sentido na vertical.
Cheque em branco
O braço direito fazia um laço pela cintura e a mão esquerda levantada, deitava estrategicamente sobre sua nuca. Era o gesto mais simples e abissal. Era com ele que via sua entrega. Num langor que provocava fascínio e sensação de poder.
O corpo mole respondia com sinais sonoros e toques leves. Tudo com a rapidez da debilitude. E ele abria os olhos na tentativa de flagrar o semblante de um grunhido. Parecia entender aquele desejo, e, por isso, ele se tornou mais um a ficar na expectativa de uma revelação.
Do alto de um penhasco todos os olhos abriram repentinos com a chegada de outro casal. Vinha também admirar a lua, que àquela altura já tinha sido oferecida como regalo. Mais acima havia desenhos que lembravam os cadernos antigos, cheios de pontos que precisavam ser unidos. Eles piscavam. Do acender a apagar, surgiam em novos lugares revelando diversas formas. Era uma noite sem nuvens.
Na cama, um lençol florido. No criado mudo, uma máscara. De olhos vendados sentiu o peso do seu quadril que mexia para frente e voltava e uma vontade de tirar as roupas de baixo. Com as pontas dos dedos ligeiros tocava o arrepio de suas coxas. Eles, longos e traiçoeiros, correram por elas, deram voltas e subiram até as costas.
O combinado era apenas sentir, mas ele foi quebrado. Tirou aquele corpo que ondulava de cima e o jogou para o lado, parando quando ficou de bruços. Arrancou a venda dos olhos e parou para admirar por alguns momentos até que se deitou sobre ele. Os pêlos ficaram ainda mais de pé.
A rua parecia estar ladeada por quaresmeiras. Coloridas e ao mesmo tempo tristes. Tudo era ambíguo como o seu olhar. Havia beleza ali, e também os artifícios duvidosos da conquista. Havia querer e insegurança. Tinham uma cumplicidade razoável, mas os diálogos nunca evoluíram. Não se chegou a falar claramente sobre um futuro bom e a participação de ambos nele.
Nas conversas o que mais incomodava era o targiversar. Mas entendia que o outro não fazia promessas que não pudessem ser cumpridas. E por mais que o presente fosse tentador, a incerteza do que estava por vir lhe fez deixar de assinar qualquer coisa que um dia servisse de cobrança.
O corpo mole respondia com sinais sonoros e toques leves. Tudo com a rapidez da debilitude. E ele abria os olhos na tentativa de flagrar o semblante de um grunhido. Parecia entender aquele desejo, e, por isso, ele se tornou mais um a ficar na expectativa de uma revelação.
Do alto de um penhasco todos os olhos abriram repentinos com a chegada de outro casal. Vinha também admirar a lua, que àquela altura já tinha sido oferecida como regalo. Mais acima havia desenhos que lembravam os cadernos antigos, cheios de pontos que precisavam ser unidos. Eles piscavam. Do acender a apagar, surgiam em novos lugares revelando diversas formas. Era uma noite sem nuvens.
Na cama, um lençol florido. No criado mudo, uma máscara. De olhos vendados sentiu o peso do seu quadril que mexia para frente e voltava e uma vontade de tirar as roupas de baixo. Com as pontas dos dedos ligeiros tocava o arrepio de suas coxas. Eles, longos e traiçoeiros, correram por elas, deram voltas e subiram até as costas.
O combinado era apenas sentir, mas ele foi quebrado. Tirou aquele corpo que ondulava de cima e o jogou para o lado, parando quando ficou de bruços. Arrancou a venda dos olhos e parou para admirar por alguns momentos até que se deitou sobre ele. Os pêlos ficaram ainda mais de pé.
A rua parecia estar ladeada por quaresmeiras. Coloridas e ao mesmo tempo tristes. Tudo era ambíguo como o seu olhar. Havia beleza ali, e também os artifícios duvidosos da conquista. Havia querer e insegurança. Tinham uma cumplicidade razoável, mas os diálogos nunca evoluíram. Não se chegou a falar claramente sobre um futuro bom e a participação de ambos nele.
Nas conversas o que mais incomodava era o targiversar. Mas entendia que o outro não fazia promessas que não pudessem ser cumpridas. E por mais que o presente fosse tentador, a incerteza do que estava por vir lhe fez deixar de assinar qualquer coisa que um dia servisse de cobrança.
quarta-feira, 30 de julho de 2008
A gente nunca esquece
Para Neila
Na minha infância bicicleta era uma geringonça formada por uma esquadria de metal, duas rodas e um guidão. Seria prudente que também tivesse freio pra minimizar os tombos, mas nem sempre havia. Na dos meninos não podia faltar bagageiro. E nas das meninas uma cesta na frente – que eu poucas vezes vi sendo usada, mas todas faziam questão. Desde cedo são voluntariosas. Vai entender as mulheres!
Eu aprendi a ter equilíbrio na vida e sobre duas rodas um pouco tarde. Já tinha uns dez anos quando encarei pra valer um passeio. No pneu de trás da minha bike, duas rodinhas menores, presas por parafusos e que me ajudavam a não cair. Tinham uma leve angulação e não tocavam a calçada de frente de casa – local dos meus treinos - todo o tempo. Assim, eu sentia quando estava usando-as e as minhas melhoras.
Uma semana dali, tirei a primeira. Estava mais confiante. Qualquer problema era só jogar o peso do meu corpo para o lado direito, o que ainda tinha suporte. Quando decidi ficar sem as duas sonhava em ter uma família margarina, com um pai que corresse ao meu lado e não me deixasse estropiar no chão. Mas eu nasci e o meu já beirava os 40. Seria muito àquela altura exigir isso. Nunca fui uma criança chantagista, que fique claro. Só aprendi essa artimanha depois.
Na minha infância bicicleta era uma das poucas brincadeiras. Nunca achei graça em ficar sujo, correr e rolar na grama com os outros pequenos. Tinha uma forma particular de me divertir e de quando em vez preferia ficar ao lado dos meus pais em rodas de adultos. Ao menos as histórias eram interessantes. Uma delas conta que meu pai remava na época em que morou no Rio. É engraçado. Ele nunca foi afeito a essas extravagâncias e da última que me recordo, com meu irmão mais novo, caiu errado, na quina da piscina no momento em que tentava acertar uma bola. Tal fato lhe rendeu uma cirurgia no ombro direito e uma cicatriz bem avantajada.
Sobre marcas eu também tenho entendimento. Já tendo a manha das pedaladas, apostava corrida com um primo da mesma idade pelas ruas do bairro. Perto de um supermercado era o nosso ponto favorito. A avenida era asfaltada e tinha uma ladeira de bar frio na barriga. Foi nela que uma vez parti na frente e quando cheguei pela metade, olhei pra trás pra ver se ele me acompanhava e trombei com um carro que estava estacionado. Foram alguns metros pelo ar e outros pela pista. E fui obrigado a ir à escola mesmo com o corpo e o rosto arranhados.
Ela era roxa e com a cela e uns adesivos em amarelo flúor. Ficou rota também e foi guardada por um tempo na garagem. Período que era pra ser curto, mas se prolongou até hoje. Minha bicicleta sumiu sem que ninguém visse. E eu entrei em desespero porque nem com o vigia da rua, que estava sempre dormindo, eu pude contar para ter qualquer informação. Na minha infância esse furto foi uma das primeiras desesperanças que conheci.
Uma amiga, entendendo que era seu melhor momento profissional, deixou filhas, cachorro e tudo mais que tem por uma temporada. Saiu da cidade para trabalhar. Fizemos, num bar, uma reunião com os mais chegados para a despedida e terminei por convidá-la e mais um par de pessoas pra um almoço no dia seguinte.
Ela não sabia bem, mas a idéia era fazer a partilha de suas coisas, ou de forma mais simpática, ajudar a cuidar de tudo durante a ausência de três meses. Um amigo que já deveria ter saído da casa da mãe ficou com o apartamento e responsabilidade de pagar as contas provenientes de seu uso. Outra que mora num espaço reduzido pegou pra si a incumbência de determinar a agenda festiva na nova locação. E eu fiquei com a bike. Profissional, cor de vinho, com amortecedores, umas tantas marchas e mais modernidades que nem sei usar.
Havia mais de dez anos desde a última vez que montara em uma bicicleta. Essa é uma digressão. Do verbo digressionar. Das conjugações da saudade. E é parte de uma retomada.
Na minha infância bicicleta era uma geringonça formada por uma esquadria de metal, duas rodas e um guidão. Seria prudente que também tivesse freio pra minimizar os tombos, mas nem sempre havia. Na dos meninos não podia faltar bagageiro. E nas das meninas uma cesta na frente – que eu poucas vezes vi sendo usada, mas todas faziam questão. Desde cedo são voluntariosas. Vai entender as mulheres!
Eu aprendi a ter equilíbrio na vida e sobre duas rodas um pouco tarde. Já tinha uns dez anos quando encarei pra valer um passeio. No pneu de trás da minha bike, duas rodinhas menores, presas por parafusos e que me ajudavam a não cair. Tinham uma leve angulação e não tocavam a calçada de frente de casa – local dos meus treinos - todo o tempo. Assim, eu sentia quando estava usando-as e as minhas melhoras.
Uma semana dali, tirei a primeira. Estava mais confiante. Qualquer problema era só jogar o peso do meu corpo para o lado direito, o que ainda tinha suporte. Quando decidi ficar sem as duas sonhava em ter uma família margarina, com um pai que corresse ao meu lado e não me deixasse estropiar no chão. Mas eu nasci e o meu já beirava os 40. Seria muito àquela altura exigir isso. Nunca fui uma criança chantagista, que fique claro. Só aprendi essa artimanha depois.
Na minha infância bicicleta era uma das poucas brincadeiras. Nunca achei graça em ficar sujo, correr e rolar na grama com os outros pequenos. Tinha uma forma particular de me divertir e de quando em vez preferia ficar ao lado dos meus pais em rodas de adultos. Ao menos as histórias eram interessantes. Uma delas conta que meu pai remava na época em que morou no Rio. É engraçado. Ele nunca foi afeito a essas extravagâncias e da última que me recordo, com meu irmão mais novo, caiu errado, na quina da piscina no momento em que tentava acertar uma bola. Tal fato lhe rendeu uma cirurgia no ombro direito e uma cicatriz bem avantajada.
Sobre marcas eu também tenho entendimento. Já tendo a manha das pedaladas, apostava corrida com um primo da mesma idade pelas ruas do bairro. Perto de um supermercado era o nosso ponto favorito. A avenida era asfaltada e tinha uma ladeira de bar frio na barriga. Foi nela que uma vez parti na frente e quando cheguei pela metade, olhei pra trás pra ver se ele me acompanhava e trombei com um carro que estava estacionado. Foram alguns metros pelo ar e outros pela pista. E fui obrigado a ir à escola mesmo com o corpo e o rosto arranhados.
Ela era roxa e com a cela e uns adesivos em amarelo flúor. Ficou rota também e foi guardada por um tempo na garagem. Período que era pra ser curto, mas se prolongou até hoje. Minha bicicleta sumiu sem que ninguém visse. E eu entrei em desespero porque nem com o vigia da rua, que estava sempre dormindo, eu pude contar para ter qualquer informação. Na minha infância esse furto foi uma das primeiras desesperanças que conheci.
Uma amiga, entendendo que era seu melhor momento profissional, deixou filhas, cachorro e tudo mais que tem por uma temporada. Saiu da cidade para trabalhar. Fizemos, num bar, uma reunião com os mais chegados para a despedida e terminei por convidá-la e mais um par de pessoas pra um almoço no dia seguinte.
Ela não sabia bem, mas a idéia era fazer a partilha de suas coisas, ou de forma mais simpática, ajudar a cuidar de tudo durante a ausência de três meses. Um amigo que já deveria ter saído da casa da mãe ficou com o apartamento e responsabilidade de pagar as contas provenientes de seu uso. Outra que mora num espaço reduzido pegou pra si a incumbência de determinar a agenda festiva na nova locação. E eu fiquei com a bike. Profissional, cor de vinho, com amortecedores, umas tantas marchas e mais modernidades que nem sei usar.
Havia mais de dez anos desde a última vez que montara em uma bicicleta. Essa é uma digressão. Do verbo digressionar. Das conjugações da saudade. E é parte de uma retomada.
sábado, 12 de julho de 2008
Olhos de chover
Naquela manhã de despedidas, saiu de casa com os olhos avermelhados de sono e tristeza. Havia bebido apenas um copo de leite na cozinha, encostado na pia, de onde era possível fitar os pés de Melissa deitada de lado no sofá da sala.
Na rua, esteve procurando por sua amiga mais íntima e sempre conselheira em momentos difíceis. Seguiu até sua casa e escutou ainda ao longe um barulho na escadaria. Aproximou-se e a viu descendo com uma mala de viagens cinza para dois. Percebendo que estava atrasada, desistiu de falar. Embargou as lágrimas no momento em que lhe deu um abraço e disse que estava tudo bem, que conversariam em outra hora quando tivesse passado o final de semana.
Andou em círculos pela cidade como costumava fazer quando a vontade era de congelar instantes ou simplesmente atrasar decisões difíceis. E assim ficou por cerca de uma hora. Vendo o tempo se acortinar em nuvens e embaçar seus óculos de sol.
Abriu a porta de casa e viu Melissa no mesmo canto, quase inerte desde cedo. Passou direto para o quarto. Bateu a porta e voltou a deitar. Ela veio ao seu encontro como se quisesse ferir. Entrou sem avisar, correu uma bolsa, pôs algumas roupas e quando foi sair estendeu a mão com um dvd, dizendo: assista quando puder.
No sofá, que estava com a espuma afundada dois centímetros pelo peso das lembranças, sentou-se. Colocou o volume alto, num número par, dedicado a saber qual a última mensagem daquela história.
Nas primeiras cenas, Briony Tallis ainda é uma menina e já mostra a que veio. Fala e anda com ares de prepotência. No andar, sempre passos e ângulos retos. Ela gasta tempos observando seu apaixonado e escrevendo peças de teatro.
Das conversas com a irmã mais velha no jardim, percebe o interesse comum pelo rapaz, filho de uma criada e que, para não fugir do folhetim habitual, teve a educação custeada pelos pais afortunados das duas moças.
Ainda é dia quando Briony se destaca na trama, conduzindo uma carta do jovem para a irmã e logo mais pegando o casal na biblioteca da mansão, ela de pernas abertas, os dois encostados em uma estante, sôfregos. E depois quando presencia o estupro sofrido por sua prima por um amigo do irmão e herdeiro de uma fábrica de chocolates.
Intempestiva, Briony consegue atrapalhar o romance que até então espreitava. Para afastar os dois, ela acusa o rapaz, dizendo tê-lo reconhecido na cena de violência. E ele é condenado às torturas da guerra. Em desejo e reparação, os reparos vêm no final, quando Briony aparece com rugas, dando uma entrevista para lançar seu vigésimo primeiro livro, o único autobiográfico da carreira.
Na obra, os amantes vencem o tempo, tão traidor quanto o Zenão de Eléia, e se encontram. Vivem juntos em uma casa num lugar longínquo, só possível de acreditar em uma fotografia antiga. Mas o final feliz só se realiza por ser imaginário e mais uma vez manipulado pela vontade alheia.
Vinícius estava sensível naquele dia que já avançava pela tarde sem hora para almoço. Ficou tocado, mas não chegou a se emocionar. Talvez por ter hábitos amadores de escritor e entender que as palavras podem, sem danos, ser instrumento das vontades e criar novas condições de existência.
Pensou em se apropriar poeticamente daquela narrativa. Metaforizar. Ligou o computador e quando iria começar a delinear o seu desejo por mudança, percebeu que um ícone se abriu, anunciando a chegada de um novo e-mail à caixa de mensagens.
Estava sozinho e não precisava fazer mise en scène. Mas não conseguiu lê-lo por completo. Abria e fechava os olhos como quem quisesse se perder e retomar de qualquer parte para tentar assim chegar a próprias conclusões. Foi numa dessas paradas que viu outra interpretação para o filme. Mais pueril até. Dizia que sempre há tempo para se pedir desculpas pelas tentativas de mudar o que o acaso uniu, usando todos os agravos da mentira. Era o primeiro texto que Melissa lhe escrevera. Uma carta anunciando um desfecho sofrível, com p.s. no final.
Na rua, esteve procurando por sua amiga mais íntima e sempre conselheira em momentos difíceis. Seguiu até sua casa e escutou ainda ao longe um barulho na escadaria. Aproximou-se e a viu descendo com uma mala de viagens cinza para dois. Percebendo que estava atrasada, desistiu de falar. Embargou as lágrimas no momento em que lhe deu um abraço e disse que estava tudo bem, que conversariam em outra hora quando tivesse passado o final de semana.
Andou em círculos pela cidade como costumava fazer quando a vontade era de congelar instantes ou simplesmente atrasar decisões difíceis. E assim ficou por cerca de uma hora. Vendo o tempo se acortinar em nuvens e embaçar seus óculos de sol.
Abriu a porta de casa e viu Melissa no mesmo canto, quase inerte desde cedo. Passou direto para o quarto. Bateu a porta e voltou a deitar. Ela veio ao seu encontro como se quisesse ferir. Entrou sem avisar, correu uma bolsa, pôs algumas roupas e quando foi sair estendeu a mão com um dvd, dizendo: assista quando puder.
No sofá, que estava com a espuma afundada dois centímetros pelo peso das lembranças, sentou-se. Colocou o volume alto, num número par, dedicado a saber qual a última mensagem daquela história.
Nas primeiras cenas, Briony Tallis ainda é uma menina e já mostra a que veio. Fala e anda com ares de prepotência. No andar, sempre passos e ângulos retos. Ela gasta tempos observando seu apaixonado e escrevendo peças de teatro.
Das conversas com a irmã mais velha no jardim, percebe o interesse comum pelo rapaz, filho de uma criada e que, para não fugir do folhetim habitual, teve a educação custeada pelos pais afortunados das duas moças.
Ainda é dia quando Briony se destaca na trama, conduzindo uma carta do jovem para a irmã e logo mais pegando o casal na biblioteca da mansão, ela de pernas abertas, os dois encostados em uma estante, sôfregos. E depois quando presencia o estupro sofrido por sua prima por um amigo do irmão e herdeiro de uma fábrica de chocolates.
Intempestiva, Briony consegue atrapalhar o romance que até então espreitava. Para afastar os dois, ela acusa o rapaz, dizendo tê-lo reconhecido na cena de violência. E ele é condenado às torturas da guerra. Em desejo e reparação, os reparos vêm no final, quando Briony aparece com rugas, dando uma entrevista para lançar seu vigésimo primeiro livro, o único autobiográfico da carreira.
Na obra, os amantes vencem o tempo, tão traidor quanto o Zenão de Eléia, e se encontram. Vivem juntos em uma casa num lugar longínquo, só possível de acreditar em uma fotografia antiga. Mas o final feliz só se realiza por ser imaginário e mais uma vez manipulado pela vontade alheia.
Vinícius estava sensível naquele dia que já avançava pela tarde sem hora para almoço. Ficou tocado, mas não chegou a se emocionar. Talvez por ter hábitos amadores de escritor e entender que as palavras podem, sem danos, ser instrumento das vontades e criar novas condições de existência.
Pensou em se apropriar poeticamente daquela narrativa. Metaforizar. Ligou o computador e quando iria começar a delinear o seu desejo por mudança, percebeu que um ícone se abriu, anunciando a chegada de um novo e-mail à caixa de mensagens.
Estava sozinho e não precisava fazer mise en scène. Mas não conseguiu lê-lo por completo. Abria e fechava os olhos como quem quisesse se perder e retomar de qualquer parte para tentar assim chegar a próprias conclusões. Foi numa dessas paradas que viu outra interpretação para o filme. Mais pueril até. Dizia que sempre há tempo para se pedir desculpas pelas tentativas de mudar o que o acaso uniu, usando todos os agravos da mentira. Era o primeiro texto que Melissa lhe escrevera. Uma carta anunciando um desfecho sofrível, com p.s. no final.
terça-feira, 8 de julho de 2008
Investindo em si (ou sobre como suportar as asperezas do tempo)
A sala é cor-de-rosa. Há querubins e serafins materializados ali. De cerâmica a maioria. Numa cômoda ao lado do sofá, numa prateleira ao largo do corredor que leva à cozinha e no passeio pra os dois quartos. Anjos que casam com orações bordadas em ponto cruz, emolduradas e postas nas paredes.
Por fora da janela, quatro bebedouros com água, açúcar e enfeites de plástico. Seis beija-flores se alimentam num bailado impressionante. E uma vez aberta a vidraça, invadem a casa para compor com o ambiente.
Não é o tipo de decoração que me agrada, mas é muito harmônico e não posso deixar de perceber o cuidado que teve em combinar estampas, em pôr as almofadas por sobre o sofá e até na cortina dos oratórios - usados durante a noite como quartos. O tecido amarelo e de franjas esconde fissuras e infiltrações.
As imperfeições estão por outras partes. Mas são escondidas por Janice. Há três anos ela tapa as rachaduras e buracos que se formam periodicamente. E enfeita com adornos barrocos com se quisesse fugir de um pesadelo.
Sobre maus bocados ela tem entendimento. O trabalho como agente penitenciária certamente não era com o que sonhava. Por causa dele, e para manter sua segurança, ela não queria ser entrevistada. Àquela altura da vida, beirando os quarenta, já tinha se acostumado com o choque de realidade que era sair do ofício e entrar no seguro abrigo. Mesmo que a proteção nem fosse tanta.
Seu sonho de ter um imóvel próprio estava fadado a desmoronar. Janice vive no bloco C de um condomínio com oito torres e 128 apartamentos, erguido sobre um alicerce frágil e com material de quinta em todo o resto. O quarto andar do edifício dela é o mais afetado. O que, na conclusão do laudo de perícia do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura, mais corre risco de cair.
Janice ainda nem terminou de pagar por ele e continua fazendo isso todo fim de mês. Vai ao banco que financiou a operação e quita mais R$ 153. Ao final de 15 anos deve ter o parcelamento terminado e conquistar em definitivo todos os direitos daquele contrato de arrendamento. Ela mexe comigo pelo simples fato de não ter esmurecido e ainda investido tempo, energia e sentimentos em seus projetos, durem o tempo que for.
Por fora da janela, quatro bebedouros com água, açúcar e enfeites de plástico. Seis beija-flores se alimentam num bailado impressionante. E uma vez aberta a vidraça, invadem a casa para compor com o ambiente.
Não é o tipo de decoração que me agrada, mas é muito harmônico e não posso deixar de perceber o cuidado que teve em combinar estampas, em pôr as almofadas por sobre o sofá e até na cortina dos oratórios - usados durante a noite como quartos. O tecido amarelo e de franjas esconde fissuras e infiltrações.
As imperfeições estão por outras partes. Mas são escondidas por Janice. Há três anos ela tapa as rachaduras e buracos que se formam periodicamente. E enfeita com adornos barrocos com se quisesse fugir de um pesadelo.
Sobre maus bocados ela tem entendimento. O trabalho como agente penitenciária certamente não era com o que sonhava. Por causa dele, e para manter sua segurança, ela não queria ser entrevistada. Àquela altura da vida, beirando os quarenta, já tinha se acostumado com o choque de realidade que era sair do ofício e entrar no seguro abrigo. Mesmo que a proteção nem fosse tanta.
Seu sonho de ter um imóvel próprio estava fadado a desmoronar. Janice vive no bloco C de um condomínio com oito torres e 128 apartamentos, erguido sobre um alicerce frágil e com material de quinta em todo o resto. O quarto andar do edifício dela é o mais afetado. O que, na conclusão do laudo de perícia do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura, mais corre risco de cair.
Janice ainda nem terminou de pagar por ele e continua fazendo isso todo fim de mês. Vai ao banco que financiou a operação e quita mais R$ 153. Ao final de 15 anos deve ter o parcelamento terminado e conquistar em definitivo todos os direitos daquele contrato de arrendamento. Ela mexe comigo pelo simples fato de não ter esmurecido e ainda investido tempo, energia e sentimentos em seus projetos, durem o tempo que for.
sexta-feira, 4 de julho de 2008
Disfarces
Passaram-se cinco anos até que dois amigos se reencontram. Em um tinham aparecido os primeiros cabelos brancos, e na cabeça outro já quase não havia fios. Um tinha perdido o abdômen rígido conquistado nas classes de judô enquanto o outro deixou de lado uns poucos quilos indesejáveis. Desejados os dois eram. Agora por suas esposas e filhos.
Na mesa de um bar, o papo clichê de rememorações e digressões atropelando as falas. Os copos, na maior parte do tempo, quase vazios. Eram rápidos e dentro de pouco mais de uma hora estavam ligeiramente bêbados. Nostálgicos, alegres, de pileque.
Como nas noites de outrora, terminaram por encontrar o caminho do Mangueirão. A casa noturna nas entocas do Parque das Colinas, ao contrário, tinha mudado pouco. De atualizações só uma radiola de fichas na sala principal, os azulejos do bar e a variedade de drinques e as putas de dona Magali, claro.
Aliás, a safra era nova, mas permanecia com as mesmas características. Só havia duas meninas jovens, que àquela altura tinham se trancado nos quartinhos um par de vezes cada uma. As demais eram de meia idade. Usavam um vocabulário chulo e pinturas multicoloridas borradas na cara. Tinham o eterno ar de decadência dos bordéis que usam luz negra debaixo do céu.
Chegaram perto de Keith e fizeram a proposta ao pé da orelha. Ela topou, mas pediu espaço para mostrar seus dotes no palco. A eles e aos demais frequentadores. Era cortesia. Subiu no palco envolto por espelhos cortados e tirou a roupa sem frescuras, parando ainda no meio da música. Desceu sem ouvir aplausos e pegou os dois pelas mãos.
Sem roupas, nada mais abrir a porta deitou com as pernas bem afastadas num exibicionismo latente. Vinícius já estava sem conseguir esconder sua excitação dentro das calças frouxas de tecido fino. Marcos também sentiu desejo pelo inusitado.
Quando foi puxado pela cintura pela meretriz seu amigo já estava em pêlos. Sentiu um nervosismo abrupto e que iria brochar. Ainda vestido conseguiu disfarçar e cedeu a vez sem moléstias para ambos.
Keith sequer se mexia enquanto era tomada pelo vigor de Vinícius. Ele estava pro cima, na clássica posição do Kama Sutra, de costas para seu amigo, parado pouco mais de um metro dali.
Marcos ficou a admirar o corpo do companheiro ao invés do da acompanhante. Ele tinha a bunda mais lisa que a dela. E com as mãos menos calejadas do que na época da adolescência, começou a se masturbar. Assumiu-se voyeur. Os três gozaram juntos. E o desejo contido de Marcos foi parcialmente saciado. Sem levantar suspeitas.
Na mesa de um bar, o papo clichê de rememorações e digressões atropelando as falas. Os copos, na maior parte do tempo, quase vazios. Eram rápidos e dentro de pouco mais de uma hora estavam ligeiramente bêbados. Nostálgicos, alegres, de pileque.
Como nas noites de outrora, terminaram por encontrar o caminho do Mangueirão. A casa noturna nas entocas do Parque das Colinas, ao contrário, tinha mudado pouco. De atualizações só uma radiola de fichas na sala principal, os azulejos do bar e a variedade de drinques e as putas de dona Magali, claro.
Aliás, a safra era nova, mas permanecia com as mesmas características. Só havia duas meninas jovens, que àquela altura tinham se trancado nos quartinhos um par de vezes cada uma. As demais eram de meia idade. Usavam um vocabulário chulo e pinturas multicoloridas borradas na cara. Tinham o eterno ar de decadência dos bordéis que usam luz negra debaixo do céu.
Chegaram perto de Keith e fizeram a proposta ao pé da orelha. Ela topou, mas pediu espaço para mostrar seus dotes no palco. A eles e aos demais frequentadores. Era cortesia. Subiu no palco envolto por espelhos cortados e tirou a roupa sem frescuras, parando ainda no meio da música. Desceu sem ouvir aplausos e pegou os dois pelas mãos.
Sem roupas, nada mais abrir a porta deitou com as pernas bem afastadas num exibicionismo latente. Vinícius já estava sem conseguir esconder sua excitação dentro das calças frouxas de tecido fino. Marcos também sentiu desejo pelo inusitado.
Quando foi puxado pela cintura pela meretriz seu amigo já estava em pêlos. Sentiu um nervosismo abrupto e que iria brochar. Ainda vestido conseguiu disfarçar e cedeu a vez sem moléstias para ambos.
Keith sequer se mexia enquanto era tomada pelo vigor de Vinícius. Ele estava pro cima, na clássica posição do Kama Sutra, de costas para seu amigo, parado pouco mais de um metro dali.
Marcos ficou a admirar o corpo do companheiro ao invés do da acompanhante. Ele tinha a bunda mais lisa que a dela. E com as mãos menos calejadas do que na época da adolescência, começou a se masturbar. Assumiu-se voyeur. Os três gozaram juntos. E o desejo contido de Marcos foi parcialmente saciado. Sem levantar suspeitas.
Um passado bom
Na terceira gaveta de um armário que tenho no escritório do meu apartamento está guardada uma caixa vermelha e com um elástico branco que guarda por sua vez imagens antigas. Por causa do meu fascínio pela fotografia, muitas delas estão lá porque julgo que são esteticamente interessantes. Desconheço até a razão de algumas terem sido feitas. Outras são minhas. Fotos de infância principalmente.
Quando eu não sei o que está por vir, sento no chão, abro a tampa e me passa um filme. É puro hábito. Tão recorrente que já sei a sequência em que estão dispostas e seria capaz de apontar os detalhes mesmo se estivera de olhos vendados. No gesto repetido de hoje cedo, percebi a força do acaso. É uma fase de mudança e eu faço outra análise.
Veraneávamos, eu e minha família, em uma casa que tinha a árvore mais exuberante que eu já vi. Até hoje não sei bem do que se trata, mas tem folhas como as de um cajueiro, só que mais resistentes, e caule e galhos como os de um pinheiro, só que são tortos. É uma surpresa. Uma das maiores obras da natureza que eu via com esquisitice.
A árvore nascia no terreno lá de casa, mas só dava sombra pra o lado do vizinho. Ele pedia insistentemente pra que nunca cortasse e seguia fazendo churrascos sob. Eu era um menino franzino naquele verão do início dos anos 1990. De tão delgado acho até que ela nem se incomodava com minhas escaladas e o lar que construí ali. A casa da árvore. Que não tinha teto nem paredes e era dividida com dezenas de passarinhos.
Havia uma diagonal feita por sobre o muro onde eu me abrigava da chuva. Isso quando chovia de dia. Só tinha permissão de passar as manhãs e tardes naquele lugar. E foi numa dessa que eu arranjei de pegar os óculos de sol de alguém. Eram negros na armação de acetato e de lentes bem escuras. Grandes pra mim, mas com um cordão que prendia no pescoço em caso de qualquer escapadela.
A foto quem tirou foi minha mãe. Eu estava encostado numa parede. Com os cabelos aloirados do sol, a pele queimada, uma bermuda caqui, camiseta branca e os tais óculos. Ao lado havia um vaso de planta da minha altura. Hoje a impressão amarelada quase não deixa ver as cores que estavam lá. E a textura da maresia. Mas agora o olfato emocional me transporta ao período de pré-adolescente pelo cheiro da independência.
Dos ares de emancipação tenho mais referências dentro da caixa. Por exemplo, outra 15 x 21. Essa com verniz e marcas de digitais. Fica junto de outra que me revela menor que uma boneca que ficava ao lado da cama da minha irmã e eu roçando nela sem roupa. Está na ala dos gestos que já me envergonharam, embora hoje ache graça.
A foto foi tirada sem que soubesse. Até meio tremida ficou. Eu usava uma camiseta de tricô num tom de pastel. Estava numa festinha com os amigos da minha rua. Na certa, arquitetando uma travessura. Remete a época em que eu comecei a saber o que era guardar segredo. Tinha um pacto com um primo da minha idade, Raphael. Nós éramos cúmplices de um esquema pesado. Era crime mesmo. Dos poucos que cometi.
Na praça da rua de cima havia uma centena de eucaliptos altos e uma banca toda pintada de branco. Minimalista que chegava a parecer ingênua. Ao redor, o frescor das plantas. Dentro, pirulitos, jornais, álbuns e figurinhas e revistas.
Foi numa prateleira escondida que encontramos exemplares proibidos para menores. Entramos e saímos de lá várias vezes sem nem pensar que o velho da banca já tinha dado conta do que pretendíamos. A revista era pornográfica mesmo. A primeira que compramos tinha uma negra farta de tudo. E no interior, ela mesma, possuídas por três homens, em todas as entradas.
Em poucas semanas já tínhamos muitas delas. Todas sujas. Fotografias arruinadas com balões e falas censuradas em qualquer local público. Pelo grande volume, mudamos de esconderijo – sim, porque elas precisavam ficar em um local secreto. Achamos de colocar tudo embaixo do sofá da sala da casa dos meus pais. Era perfeito. Até o dia da faxina quando afastaram ele.
Meu pai me apanhou na escola e não deu nenhuma palavra. Na certa já sabia, mas reparou nos meus últimos minutos sem culpa cristã. Antes do almoço minha mãe me puxou no canto e me esbofeteou com gritos. Ela estava certa. E tive de entregar meu primo e agüentar o sarro dos amigos da rua sobre minha mãe ter ido falar com a esposa do velho da banca.
Depois veio uma nova fase. Estava pronto para entrar na universidade, saindo da escola. Foi lá que encontrei uma das minhas maiores aquisições: Gláucia. Eu usava dos mais variados subterfúgios para não ficar com ela no início. Gostava daquela idéia de ser conquistado e assim fui levando até que a vontade já era maior que meu ego. Foi uma história bonita de quase cinco anos.
Em Caicó, numa festa de Sant’Ana a gente levou uma surra de muriçoca. A foto foi feita a uma distância razoável pra não mostrar as potocas na pele como algumas das marcas daquela noite. Na impressão guardada, apenas eu, ela e meu primeiro carro, que tinha na mala um adesivo do gato Félix. A máquina ainda era de filme de rolo e eu nem sabia que existia photoshop. Pra enfeitar, pedi pra fosse revelada com margens brancas.
Quando eu saí dos bancos acadêmicos as imagens se tornaram um objeto de trabalho. São muitas as que vejo diariamente, as que comento, as que ignoro. Voltei a montar as pessoais em álbuns de papel e cantoneiras. Tenho planos de escrever nos cantos das páginas, só que venho protelando. Quiçá pela falta de tempo nesse período, ou porque eu não preciso verbalizar o que sei e é só meu.
Quando eu não sei o que está por vir, sento no chão, abro a tampa e me passa um filme. É puro hábito. Tão recorrente que já sei a sequência em que estão dispostas e seria capaz de apontar os detalhes mesmo se estivera de olhos vendados. No gesto repetido de hoje cedo, percebi a força do acaso. É uma fase de mudança e eu faço outra análise.
Veraneávamos, eu e minha família, em uma casa que tinha a árvore mais exuberante que eu já vi. Até hoje não sei bem do que se trata, mas tem folhas como as de um cajueiro, só que mais resistentes, e caule e galhos como os de um pinheiro, só que são tortos. É uma surpresa. Uma das maiores obras da natureza que eu via com esquisitice.
A árvore nascia no terreno lá de casa, mas só dava sombra pra o lado do vizinho. Ele pedia insistentemente pra que nunca cortasse e seguia fazendo churrascos sob. Eu era um menino franzino naquele verão do início dos anos 1990. De tão delgado acho até que ela nem se incomodava com minhas escaladas e o lar que construí ali. A casa da árvore. Que não tinha teto nem paredes e era dividida com dezenas de passarinhos.
Havia uma diagonal feita por sobre o muro onde eu me abrigava da chuva. Isso quando chovia de dia. Só tinha permissão de passar as manhãs e tardes naquele lugar. E foi numa dessa que eu arranjei de pegar os óculos de sol de alguém. Eram negros na armação de acetato e de lentes bem escuras. Grandes pra mim, mas com um cordão que prendia no pescoço em caso de qualquer escapadela.
A foto quem tirou foi minha mãe. Eu estava encostado numa parede. Com os cabelos aloirados do sol, a pele queimada, uma bermuda caqui, camiseta branca e os tais óculos. Ao lado havia um vaso de planta da minha altura. Hoje a impressão amarelada quase não deixa ver as cores que estavam lá. E a textura da maresia. Mas agora o olfato emocional me transporta ao período de pré-adolescente pelo cheiro da independência.
Dos ares de emancipação tenho mais referências dentro da caixa. Por exemplo, outra 15 x 21. Essa com verniz e marcas de digitais. Fica junto de outra que me revela menor que uma boneca que ficava ao lado da cama da minha irmã e eu roçando nela sem roupa. Está na ala dos gestos que já me envergonharam, embora hoje ache graça.
A foto foi tirada sem que soubesse. Até meio tremida ficou. Eu usava uma camiseta de tricô num tom de pastel. Estava numa festinha com os amigos da minha rua. Na certa, arquitetando uma travessura. Remete a época em que eu comecei a saber o que era guardar segredo. Tinha um pacto com um primo da minha idade, Raphael. Nós éramos cúmplices de um esquema pesado. Era crime mesmo. Dos poucos que cometi.
Na praça da rua de cima havia uma centena de eucaliptos altos e uma banca toda pintada de branco. Minimalista que chegava a parecer ingênua. Ao redor, o frescor das plantas. Dentro, pirulitos, jornais, álbuns e figurinhas e revistas.
Foi numa prateleira escondida que encontramos exemplares proibidos para menores. Entramos e saímos de lá várias vezes sem nem pensar que o velho da banca já tinha dado conta do que pretendíamos. A revista era pornográfica mesmo. A primeira que compramos tinha uma negra farta de tudo. E no interior, ela mesma, possuídas por três homens, em todas as entradas.
Em poucas semanas já tínhamos muitas delas. Todas sujas. Fotografias arruinadas com balões e falas censuradas em qualquer local público. Pelo grande volume, mudamos de esconderijo – sim, porque elas precisavam ficar em um local secreto. Achamos de colocar tudo embaixo do sofá da sala da casa dos meus pais. Era perfeito. Até o dia da faxina quando afastaram ele.
Meu pai me apanhou na escola e não deu nenhuma palavra. Na certa já sabia, mas reparou nos meus últimos minutos sem culpa cristã. Antes do almoço minha mãe me puxou no canto e me esbofeteou com gritos. Ela estava certa. E tive de entregar meu primo e agüentar o sarro dos amigos da rua sobre minha mãe ter ido falar com a esposa do velho da banca.
Depois veio uma nova fase. Estava pronto para entrar na universidade, saindo da escola. Foi lá que encontrei uma das minhas maiores aquisições: Gláucia. Eu usava dos mais variados subterfúgios para não ficar com ela no início. Gostava daquela idéia de ser conquistado e assim fui levando até que a vontade já era maior que meu ego. Foi uma história bonita de quase cinco anos.
Em Caicó, numa festa de Sant’Ana a gente levou uma surra de muriçoca. A foto foi feita a uma distância razoável pra não mostrar as potocas na pele como algumas das marcas daquela noite. Na impressão guardada, apenas eu, ela e meu primeiro carro, que tinha na mala um adesivo do gato Félix. A máquina ainda era de filme de rolo e eu nem sabia que existia photoshop. Pra enfeitar, pedi pra fosse revelada com margens brancas.
Quando eu saí dos bancos acadêmicos as imagens se tornaram um objeto de trabalho. São muitas as que vejo diariamente, as que comento, as que ignoro. Voltei a montar as pessoais em álbuns de papel e cantoneiras. Tenho planos de escrever nos cantos das páginas, só que venho protelando. Quiçá pela falta de tempo nesse período, ou porque eu não preciso verbalizar o que sei e é só meu.
quinta-feira, 3 de julho de 2008
Para sempre
Eu já acreditei que muitas coisas fossem. Até que relacionamentos seriam. Mas a vida vem tentando me provar que tudo se desgasta. E mesmo a catarse emocional do fim não consegue purificar a alma a ponto de que haja um recomeço. Sem lembranças, sem dar conselhos como uma forma de nostalgia.
Numa fase dúbia, minha metade crespa diz com um pragmatismo ora incômodo que tudo tem um prazo mais curto e é prudente saber aproveitar. A outra é mais romântica e quer acreditar insistentemente em ciclos e retomadas.
Um pouco mais rarefeito, acordei com o desejo de saber se essa imprecisão atormenta só aos que vivem momentos de conflito. E sem grande prejuízo para a verdade, perguntei a dez amigos se eles acham que algo é para sempre.
O menos emocional me surpreendeu. Disse que os sentimentos intangíveis são. E que tudo que seja palpável deve ser servido em doses homeopáticas. Outra que passa por uma fase mais conturbada acredita na tradição budista. É adepta da lei da impermanência, que antecipa de forma drástica o certeiro fim.
A mais verborrágica acredita na relação entre pais e filhos, no encantamento e na surpresa. Um que mora longe não expôs argumentos piegas quando revelou acreditar no amor fraterno. Uma das mais amadas por mim quer que bons momentos sejam arquivados para sempre. Ela divide espaço com as lembranças de outra amiga, que disse que as pessoas mudam e o melhor é guardar recortes.
A sétima acha que se é para sempre é um verdadeiro milagre. Outro respondeu: não. Uma que curte música eletrônica – e acho que expande a idéia de amor plural – disse que até o querer dela por alguém é mutante, logo o que existe é movimento. E mover-se provoca cansaço. E a que faz terapia, e não pede uma oportunidade de terapeutizar os mais maleáveis, acha que as coisas feitas em amor possuem vida longa.
Anotei tudo e resolvi eu elencar algumas coisas, que mesmo sem saber se serão eternas, gostaria que fossem.
Minha memória olfativa. O carinho do toque que sentia na pele durante as férias de 2004. As noites lendo poesia e bebendo vinho. A ressaca que não entorpece as vontades do corpo. A boca pastosa em dias de preguiça. As tardes de domingo nas dunas. O frio na espinha de ansiedade. O amor que tenho por minha mãe. O perdão que anunciei ter concedido. Um bicho de pelúcia que ganhei de aniversário e que de quando em vez puxo como se fosse rasgar. Os projetos ambiciosos demais que não arrisco tocar - que continuem sendo só projetos. Uma vida tranqüila. Algumas palavras que foram ditas antes de caírem as lágrimas. A crescente coleção de músicas que acredito que foram feitas pra mim. O relacionamento verdadeiro que construí e solidifiquei em um lar.
Há outras coisas. Mas as guardo em segredo. São ingênuas demais para serem compartilhadas sem vergonha. Quero continuar acreditando que ao menos um desses desejos, mesmo que ao acaso, possa se tornar real. E que meus amigos alcancem a mesma proeza. Até os que clamam por dinamismo, que consigam harmonizar a órbita e o centro estático de duas forças. Do que se é e do que será. “Tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo. O ser não é mais que o vir-a-ser.” (Heráclito).
Numa fase dúbia, minha metade crespa diz com um pragmatismo ora incômodo que tudo tem um prazo mais curto e é prudente saber aproveitar. A outra é mais romântica e quer acreditar insistentemente em ciclos e retomadas.
Um pouco mais rarefeito, acordei com o desejo de saber se essa imprecisão atormenta só aos que vivem momentos de conflito. E sem grande prejuízo para a verdade, perguntei a dez amigos se eles acham que algo é para sempre.
O menos emocional me surpreendeu. Disse que os sentimentos intangíveis são. E que tudo que seja palpável deve ser servido em doses homeopáticas. Outra que passa por uma fase mais conturbada acredita na tradição budista. É adepta da lei da impermanência, que antecipa de forma drástica o certeiro fim.
A mais verborrágica acredita na relação entre pais e filhos, no encantamento e na surpresa. Um que mora longe não expôs argumentos piegas quando revelou acreditar no amor fraterno. Uma das mais amadas por mim quer que bons momentos sejam arquivados para sempre. Ela divide espaço com as lembranças de outra amiga, que disse que as pessoas mudam e o melhor é guardar recortes.
A sétima acha que se é para sempre é um verdadeiro milagre. Outro respondeu: não. Uma que curte música eletrônica – e acho que expande a idéia de amor plural – disse que até o querer dela por alguém é mutante, logo o que existe é movimento. E mover-se provoca cansaço. E a que faz terapia, e não pede uma oportunidade de terapeutizar os mais maleáveis, acha que as coisas feitas em amor possuem vida longa.
Anotei tudo e resolvi eu elencar algumas coisas, que mesmo sem saber se serão eternas, gostaria que fossem.
Minha memória olfativa. O carinho do toque que sentia na pele durante as férias de 2004. As noites lendo poesia e bebendo vinho. A ressaca que não entorpece as vontades do corpo. A boca pastosa em dias de preguiça. As tardes de domingo nas dunas. O frio na espinha de ansiedade. O amor que tenho por minha mãe. O perdão que anunciei ter concedido. Um bicho de pelúcia que ganhei de aniversário e que de quando em vez puxo como se fosse rasgar. Os projetos ambiciosos demais que não arrisco tocar - que continuem sendo só projetos. Uma vida tranqüila. Algumas palavras que foram ditas antes de caírem as lágrimas. A crescente coleção de músicas que acredito que foram feitas pra mim. O relacionamento verdadeiro que construí e solidifiquei em um lar.
Há outras coisas. Mas as guardo em segredo. São ingênuas demais para serem compartilhadas sem vergonha. Quero continuar acreditando que ao menos um desses desejos, mesmo que ao acaso, possa se tornar real. E que meus amigos alcancem a mesma proeza. Até os que clamam por dinamismo, que consigam harmonizar a órbita e o centro estático de duas forças. Do que se é e do que será. “Tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo. O ser não é mais que o vir-a-ser.” (Heráclito).
quarta-feira, 2 de julho de 2008
Das linhas e pontilhados (ou traços que anunciam a morte)
Era pontilhada. Como reticências. Não a via por sobre a sua cama, mas sabia que estava ali. Uma linha ameaçadora e que se tivesse dedos os apontaria para o seu rosto indagando sobre tudo o que deixou de explicar dentro dos últimos anos.
Apertou seu pulso com força e puxou numa diagonal que de tão certeira rasgou a blusa estampada de cetim ao lado da costura que levava ao braço direito e terminou por arrastá-la para o chão do asfalto quente. Com a pele do rosto rasgada e o ouvido no solo se assustou com o barulho tardio da buzina, uma freada brusca e o choque entre os dois veículos.
Era uma manhã de sol forte. Liara atravessava a rua distraída. Nas linhas aparentemente seguras de uma faixa de pedestre. Ouvia better together, do Jack Johnson, no seu Ipod. Música que lhe colocava em transe e concedia o direito ao sorriso sem disfarces, que capturava as gotas de suor que escorriam de suas têmporas.
Depois da queda ficou inconsciente por dois ou três minutos. Impacto daquela sensação de ser salva por um estranho, que sequer lhe esperara acordar. Queria agradecer pela mão amiga.
Depois do choque de realidade que foi ver a multidão ao seu redor - gente que estava ali por curiosidade e quem sabe até vibrasse contra sua vida só pelo prazer de ver representada diante dos olhos a violência das ruas a que todos estão susceptíveis – teve paragens. Começava a observar os avisos. Os horizontais, dos agravos do mar adiante. Os verticais e os outros que estão ao alcance dos olhos, mas por vezes são ignorados.
Já anoitecera e o gato ronronava por sobre o braço do sofá quando a porta se abriu. Ele chegou com sua maleta preta, os sapatos ainda empoeirados de um barro avermelhado e um apetite que nem de longe parecia com o dela. Enquanto lhe corroia as vísceras um desejo libidinoso, a ele só o estômago preocupava.
Abriu um tinto meio seco. Duas taças. Sugeriu um brinde e ouviu o tilintar, mas nenhum olhar foi lançado em sua direção. Ainda assim, deu o primeiro trago. Seguiu bebendo numa tentativa de conseguir ganhar coragem e ultrapassar a linha que os separava.
Servidos os pratos, sugeriu uma música. Ele aceitou, mas nem tantos acordes poderiam fazê-lo esboçar o que o desejo de Liara pedia. O que existia entre os dois era metade tédio, pelo simples contentamento de ter um abrigo seguro. E na outra metade havia preguiça.
A cama estava vazia quando ela acordou no horário de sempre. Não precisava de despertador. O vento frio batendo do lado direito do seu corpo já era um sinal de que ninguém estava mais ao lado. Fora sem sequer lhe dar um beijo de despedida. Era a rotina do trabalho, da falta de urgência, do conformismo.
Estava do lado certo do quadrado. Na parte que ainda lhe cabia. Sem invadir os espaços foi deixando que a inércia mudasse sua vontade de poder retomar a injeção motora daquela relação. Seu inconsciente refletia o discurso do outro.
Desenganada da vida saiu de casa com uma roupa leve. Foi correr. Pelo esforço, voltava a ter o peito acelerado e o corpo suando. Nas linhas daquela pista seu olhar cruzou com um que tinha a mesma mensagem. E talvez tenha se apaixonado, mas não foi suficientemente forte para alimentar aquela cria.
Em dez dias estavam num mirante, despedindo-se. E pela primeira vez, nos olhos dele viu lágrimas. Ficou inerte, sem coragem de tocar. Era um sentimento vultoso que beirava a margem do admissível, quase se encostando à loucura. Foi por ele que perdeu o controle e se aventurou nos dias em que combinaram de dormir juntos. Por ele também que parou para observar o vulcão, sem sentir medo ou tentar mais fugir.
Mas na paixão não existe segurança. O que sobra é muita expectativa. E dias como os dois separados podem significar o amadurecimento ou simplesmente romper com tudo. Se não é amor a distância se torna um impedimento.
Quando abriu a porta as coisas estavam no mesmo lugar. Mais de um mês havia se passado e tudo o que tinha sido conquistado até ali, permanecia. Liara chorou. Não porque estava sozinha e sentia medo de ter feito as escolhas erradas e logo teria de arcar com a agonia da solidão. Mas era extremamente desconfortável viver dois lutos de uma só vez.
Com as janelas abertas foi inundada por uma tempestade que encobria quase todo o trânsito. Olhou para baixo e se viu no meio da pista, no meio da chuva. Se estivesse novamente ali, mesmo sem conseguir controlar seus impulsos, teria usado o freio e esperado o mal tempo passar antes de seguir seu rumo. No vai e vem frenético do mundo o maior risco ainda é ser atropelado.
Apertou seu pulso com força e puxou numa diagonal que de tão certeira rasgou a blusa estampada de cetim ao lado da costura que levava ao braço direito e terminou por arrastá-la para o chão do asfalto quente. Com a pele do rosto rasgada e o ouvido no solo se assustou com o barulho tardio da buzina, uma freada brusca e o choque entre os dois veículos.
Era uma manhã de sol forte. Liara atravessava a rua distraída. Nas linhas aparentemente seguras de uma faixa de pedestre. Ouvia better together, do Jack Johnson, no seu Ipod. Música que lhe colocava em transe e concedia o direito ao sorriso sem disfarces, que capturava as gotas de suor que escorriam de suas têmporas.
Depois da queda ficou inconsciente por dois ou três minutos. Impacto daquela sensação de ser salva por um estranho, que sequer lhe esperara acordar. Queria agradecer pela mão amiga.
Depois do choque de realidade que foi ver a multidão ao seu redor - gente que estava ali por curiosidade e quem sabe até vibrasse contra sua vida só pelo prazer de ver representada diante dos olhos a violência das ruas a que todos estão susceptíveis – teve paragens. Começava a observar os avisos. Os horizontais, dos agravos do mar adiante. Os verticais e os outros que estão ao alcance dos olhos, mas por vezes são ignorados.
Já anoitecera e o gato ronronava por sobre o braço do sofá quando a porta se abriu. Ele chegou com sua maleta preta, os sapatos ainda empoeirados de um barro avermelhado e um apetite que nem de longe parecia com o dela. Enquanto lhe corroia as vísceras um desejo libidinoso, a ele só o estômago preocupava.
Abriu um tinto meio seco. Duas taças. Sugeriu um brinde e ouviu o tilintar, mas nenhum olhar foi lançado em sua direção. Ainda assim, deu o primeiro trago. Seguiu bebendo numa tentativa de conseguir ganhar coragem e ultrapassar a linha que os separava.
Servidos os pratos, sugeriu uma música. Ele aceitou, mas nem tantos acordes poderiam fazê-lo esboçar o que o desejo de Liara pedia. O que existia entre os dois era metade tédio, pelo simples contentamento de ter um abrigo seguro. E na outra metade havia preguiça.
A cama estava vazia quando ela acordou no horário de sempre. Não precisava de despertador. O vento frio batendo do lado direito do seu corpo já era um sinal de que ninguém estava mais ao lado. Fora sem sequer lhe dar um beijo de despedida. Era a rotina do trabalho, da falta de urgência, do conformismo.
Estava do lado certo do quadrado. Na parte que ainda lhe cabia. Sem invadir os espaços foi deixando que a inércia mudasse sua vontade de poder retomar a injeção motora daquela relação. Seu inconsciente refletia o discurso do outro.
Desenganada da vida saiu de casa com uma roupa leve. Foi correr. Pelo esforço, voltava a ter o peito acelerado e o corpo suando. Nas linhas daquela pista seu olhar cruzou com um que tinha a mesma mensagem. E talvez tenha se apaixonado, mas não foi suficientemente forte para alimentar aquela cria.
Em dez dias estavam num mirante, despedindo-se. E pela primeira vez, nos olhos dele viu lágrimas. Ficou inerte, sem coragem de tocar. Era um sentimento vultoso que beirava a margem do admissível, quase se encostando à loucura. Foi por ele que perdeu o controle e se aventurou nos dias em que combinaram de dormir juntos. Por ele também que parou para observar o vulcão, sem sentir medo ou tentar mais fugir.
Mas na paixão não existe segurança. O que sobra é muita expectativa. E dias como os dois separados podem significar o amadurecimento ou simplesmente romper com tudo. Se não é amor a distância se torna um impedimento.
Quando abriu a porta as coisas estavam no mesmo lugar. Mais de um mês havia se passado e tudo o que tinha sido conquistado até ali, permanecia. Liara chorou. Não porque estava sozinha e sentia medo de ter feito as escolhas erradas e logo teria de arcar com a agonia da solidão. Mas era extremamente desconfortável viver dois lutos de uma só vez.
Com as janelas abertas foi inundada por uma tempestade que encobria quase todo o trânsito. Olhou para baixo e se viu no meio da pista, no meio da chuva. Se estivesse novamente ali, mesmo sem conseguir controlar seus impulsos, teria usado o freio e esperado o mal tempo passar antes de seguir seu rumo. No vai e vem frenético do mundo o maior risco ainda é ser atropelado.
domingo, 8 de junho de 2008
Passando um filme
Não deveriam estar juntos. Dentro do cinema, clima romântico, pouca luz, e ele havia acabado de indagar sem palavras o porquê daquele roçado mais forte de pernas. Depois de pouco mais de duas semanas de encontros, percebeu que eles não precisavam ser clandestinos apenas pra si, que tinha um relacionamento paralelo, mas também para Mauro, que se mostrava muito inexperiente, muito amedrontado com pré-julgamentos.
Ele nunca foi um grande fingidor. Havia cometido deslizes. Poucos. Falava mais do que era realmente capaz de fazer. Sentiu-se atraído por outras pessoas por um par de vezes e nelas duas percebeu o mesmo movimento pendular e pulou fora. Era visceral, apenas carne, sexo, excreções. Desejos saciados em poucos minutos gastos em qualquer bueiro pago por hora.
O grande equívoco foi enxergar em Mauro a seta que apontava para a saída de um ostracismo que era involuntário e penoso como um cárcere. Assim o via. Assim queria que ele fosse. O projeto de uma fuga perfeita. Naquele reflexo se inspirou, tocou e sentiu frio. Mesmo assim se apaixonou. Talvez nem fosse pela pessoa, mas pela possibilidade.
Sem controle, tomou cafés, embriagou-se e perdeu o sono por noites seguidas, o que só tornava os dias mais longos, o próximo momento mais distante. Para abreviar sua condição de expectante, tomou a iniciativa de convidar para um almoço. Era íntimo e mostrava a vida muito mais desenhada. Fácil de ser compreendida. Pra que ele se decidisse se era aquilo ou não. E foi.
Não precisava mais pedir permissão. Por isso planejou o day after. O re-encontro esperado com ansiedade. Saíram juntos, dividiram outra refeição, molharam os pés na água, depois o corpo inteiro. Trocaram carinhos e beijos quando o sol já se punha por detrás do vidro que guardava o ar refrigerado e os cheiros. Mesmo protegido por aquele espaço, ele não estava livre para ir tão longe. Não sem se sentir um canalha.
Ser infiel àquela altura era mais grave. Ultrapassava uma questão de estar nos frêmitos roxos de outra carne, cheio de desejo e frivolidades. Passava a cumular outras manutenções. Foi assim que começou a transferir seu carinho.
Pela influência, parecia voltar a ser um adolescente. Acreditando em amor plural, na distribuição logisticamente perfeita do afeto que poderia explicar a entrega impensada a um sentimento agora dividido.
Passava da hora e com a mesma disponibilidade juvenil esqueceu de que era preciso cessar e aceitou o convite par o cinema. Não era pelo filme que poderia lhe arrancar uma risada corriqueira e despertar desejo no outro. Nem por ultrapassar o limite prudencial por causa desse arroubo. Era apenas para estar ao lado. E foi.
Chegaram e apressadamente sentaram-se lado a lado. A película com mulheres frenéticas e comportamentos dissociados em um mesmo grupo, e frases de efeito que deixavam claro não existir qualquer resquício de pudor, em alguns momentos não lhe incomodou. Era capaz de uma nova adaptação, não fosse o episódio no centro da história.
Lá pelo meio do filme, mais uma vez, era carinho aquele gesto de passar a perna na dele com um pouco mais de força. Mauro podia não ter ninguém a quem dar explicações diretamente, mas precisa esconder até a si mesmo do resto do mundo. E, definitivamente, sua companhia não era de assistir a um filme de braços cruzados. Nessa posição eles só servem para amarrotar a roupa.
Ele nunca foi um grande fingidor. Havia cometido deslizes. Poucos. Falava mais do que era realmente capaz de fazer. Sentiu-se atraído por outras pessoas por um par de vezes e nelas duas percebeu o mesmo movimento pendular e pulou fora. Era visceral, apenas carne, sexo, excreções. Desejos saciados em poucos minutos gastos em qualquer bueiro pago por hora.
O grande equívoco foi enxergar em Mauro a seta que apontava para a saída de um ostracismo que era involuntário e penoso como um cárcere. Assim o via. Assim queria que ele fosse. O projeto de uma fuga perfeita. Naquele reflexo se inspirou, tocou e sentiu frio. Mesmo assim se apaixonou. Talvez nem fosse pela pessoa, mas pela possibilidade.
Sem controle, tomou cafés, embriagou-se e perdeu o sono por noites seguidas, o que só tornava os dias mais longos, o próximo momento mais distante. Para abreviar sua condição de expectante, tomou a iniciativa de convidar para um almoço. Era íntimo e mostrava a vida muito mais desenhada. Fácil de ser compreendida. Pra que ele se decidisse se era aquilo ou não. E foi.
Não precisava mais pedir permissão. Por isso planejou o day after. O re-encontro esperado com ansiedade. Saíram juntos, dividiram outra refeição, molharam os pés na água, depois o corpo inteiro. Trocaram carinhos e beijos quando o sol já se punha por detrás do vidro que guardava o ar refrigerado e os cheiros. Mesmo protegido por aquele espaço, ele não estava livre para ir tão longe. Não sem se sentir um canalha.
Ser infiel àquela altura era mais grave. Ultrapassava uma questão de estar nos frêmitos roxos de outra carne, cheio de desejo e frivolidades. Passava a cumular outras manutenções. Foi assim que começou a transferir seu carinho.
Pela influência, parecia voltar a ser um adolescente. Acreditando em amor plural, na distribuição logisticamente perfeita do afeto que poderia explicar a entrega impensada a um sentimento agora dividido.
Passava da hora e com a mesma disponibilidade juvenil esqueceu de que era preciso cessar e aceitou o convite par o cinema. Não era pelo filme que poderia lhe arrancar uma risada corriqueira e despertar desejo no outro. Nem por ultrapassar o limite prudencial por causa desse arroubo. Era apenas para estar ao lado. E foi.
Chegaram e apressadamente sentaram-se lado a lado. A película com mulheres frenéticas e comportamentos dissociados em um mesmo grupo, e frases de efeito que deixavam claro não existir qualquer resquício de pudor, em alguns momentos não lhe incomodou. Era capaz de uma nova adaptação, não fosse o episódio no centro da história.
Lá pelo meio do filme, mais uma vez, era carinho aquele gesto de passar a perna na dele com um pouco mais de força. Mauro podia não ter ninguém a quem dar explicações diretamente, mas precisa esconder até a si mesmo do resto do mundo. E, definitivamente, sua companhia não era de assistir a um filme de braços cruzados. Nessa posição eles só servem para amarrotar a roupa.
quinta-feira, 5 de junho de 2008
A música de hoje
Nas líricas que ouço guardo impressões dos dias. Nos dias em que só ouço tenho vontade de falar. Uma vontade bestial que pode brotar de uma garrafa de vinho. Ou de uma confidência ao pé da cama. Não tenho preferências. Me Vindo o encorajamento, não me importa o que o motivou. Mesmo sabendo que as confidências me soam como canções. Ao pé da orelha.
sábado, 31 de maio de 2008
Ressalvas
Desejos em mim parecem ter vida longa, mesmo que nunca tenha desejado que seja assim. Uma profusão de desejos me amedronta. Por isso que às vezes preciso prostituir as palavras para expressar minhas infâmias.
É mais um dia em que a chuva invade a sacada do meu apartamento. Vejo incólume. A chuva alaga o chão, mancha os vidros e molha as plantas. Tem suas compensações. E, afinal, sempre quis ter uma sacada.
O cansaço do sol incomoda especialmente hoje. Se estivesse mais disposto poderia vencer esse mal tempo. Ao deitar, desejei que o amanhecer fosse claro e com forma de maresia. Receberia em sinal de glória tudo pronto. E com setas apontando o caminho.
Desafortunadamente o tempo é um Zenão. As águas têm mais força. Vencem até mesmo a aspereza das pedras. Só não derrotam o meu desejo. Quero hoje acreditar mais no poeta e em suas profusões. Que os dias são iguais e distintamente belos. Cada um é como é.
Meus desejos têm abundância na alma. E de alma eu só conheço a minha. Quando miro, deixo meus desejos serem percebidos. São sinais com os olhos e com a boca, num ato de mostrar os dentes, antes de morder a língua. Meus desejos são de um homem comum. Sem as pretensões da poesia. Vulgares.
Meus desejos alimentam outros guardados. Também da alma, mas que não revelo. Ressabiado. Tenho motivos. Quanto mais o tempo fecha fica difícil ver a paisagem ao longe. De perto, não sou bom observador. E ademais, sei que há gente que não é honesta com seus desejos, que sorri com falsidade.
É mais um dia em que a chuva invade a sacada do meu apartamento. Vejo incólume. A chuva alaga o chão, mancha os vidros e molha as plantas. Tem suas compensações. E, afinal, sempre quis ter uma sacada.
O cansaço do sol incomoda especialmente hoje. Se estivesse mais disposto poderia vencer esse mal tempo. Ao deitar, desejei que o amanhecer fosse claro e com forma de maresia. Receberia em sinal de glória tudo pronto. E com setas apontando o caminho.
Desafortunadamente o tempo é um Zenão. As águas têm mais força. Vencem até mesmo a aspereza das pedras. Só não derrotam o meu desejo. Quero hoje acreditar mais no poeta e em suas profusões. Que os dias são iguais e distintamente belos. Cada um é como é.
Meus desejos têm abundância na alma. E de alma eu só conheço a minha. Quando miro, deixo meus desejos serem percebidos. São sinais com os olhos e com a boca, num ato de mostrar os dentes, antes de morder a língua. Meus desejos são de um homem comum. Sem as pretensões da poesia. Vulgares.
Meus desejos alimentam outros guardados. Também da alma, mas que não revelo. Ressabiado. Tenho motivos. Quanto mais o tempo fecha fica difícil ver a paisagem ao longe. De perto, não sou bom observador. E ademais, sei que há gente que não é honesta com seus desejos, que sorri com falsidade.
quinta-feira, 29 de maio de 2008
Sobre escolhas
Ela é uma nau e eu um moinho. Nós dois precisamos de vento. Mas o que me faz girar a afasta de mim. Peço ao tempo que não seja desleal. Mesmo que esse gesto me custe o ócio.
Como moinho, temo ver o mar revolto. Embarcação tão vistosa não pode ficar à deriva. Suas velas não a deixam passar despercebida. Por isso um simples suspiro me faz indagar.
Amarrado a sua proa, noto que não está desapercebida. A precaução me aponta canhões, a ponto de colocar encurralado. Seria justificável ao analisar o rumo dessa empreitada: o descobrimento.
Eu, moinho, tenho o mesmo objetivo. Quero nessa busca encontrar o ponto mais alto e mais verde dessa terra. Ancorar a nave e ali fazer uma estação eólica.
Com ventos movendo minhas pás, produzirei mais energia para lhe ofertar. Pouparei seu desgaste de fazer longas jornadas. Serei companheiro.
Como moinho, temo ver o mar revolto. Embarcação tão vistosa não pode ficar à deriva. Suas velas não a deixam passar despercebida. Por isso um simples suspiro me faz indagar.
Amarrado a sua proa, noto que não está desapercebida. A precaução me aponta canhões, a ponto de colocar encurralado. Seria justificável ao analisar o rumo dessa empreitada: o descobrimento.
Eu, moinho, tenho o mesmo objetivo. Quero nessa busca encontrar o ponto mais alto e mais verde dessa terra. Ancorar a nave e ali fazer uma estação eólica.
Com ventos movendo minhas pás, produzirei mais energia para lhe ofertar. Pouparei seu desgaste de fazer longas jornadas. Serei companheiro.
quarta-feira, 28 de maio de 2008
Reflexos da chuva
Quando chove, a natureza dos bichos é se proteger. Outro dia, enquanto chovia, um imbuá descia pelo pano da cortina da minha sala. Seu preto destacava do tecido alvo. Movimentando aquelas dezenas de pernas, parecia estar apressado.
Por causa da chuva, as portas e janelas estavam fechadas. Ademais moro no décimo quinto andar e nem imagino como ele possa ter chegado até aqui. Mesmo sabendo que, quando chove é instintivo, os bichos precisam e quase sempre conseguem se proteger.
A chuva talvez tivesse destruído sua morada, que poderia ter sido construída habilidosamente em um vaso de planta generoso que tenho na varanda do apartamento. Sim, porque a chuva também faz estragos na terra. Cava buracos e transforma em poças de lama todas as casas de minhoca.
Talvez tivesse procurando ajuda de um ser semelhante que por ventura poderia viver em outro vasinho posto nessa minha selva cheia de paredes. Força de outro imbuá, que pudesse resgatar, quem sabe, seus familiares. O alagamento e a vida justificariam a pressa.
Senti-me pequeno demais para interferir no destino daquele imbuá, que fosse para colocá-lo no chão. Acho que ele caminhava nesse sentido. Um pouco afastado, torci por ele. Pra mim, chega a ter cheiro de poesia ser vizinho de uma família de imbuás.
Também na natureza a gente torce com ares de curiosidade. Fiquei olhando até que ele sumiu por detrás do sofá com jeito de montanha. E, na minha imaginação ele conseguiu encontrar animais solidários e salvou seus filhos e companheira.
Por causa da chuva, as portas e janelas estavam fechadas. Ademais moro no décimo quinto andar e nem imagino como ele possa ter chegado até aqui. Mesmo sabendo que, quando chove é instintivo, os bichos precisam e quase sempre conseguem se proteger.
A chuva talvez tivesse destruído sua morada, que poderia ter sido construída habilidosamente em um vaso de planta generoso que tenho na varanda do apartamento. Sim, porque a chuva também faz estragos na terra. Cava buracos e transforma em poças de lama todas as casas de minhoca.
Talvez tivesse procurando ajuda de um ser semelhante que por ventura poderia viver em outro vasinho posto nessa minha selva cheia de paredes. Força de outro imbuá, que pudesse resgatar, quem sabe, seus familiares. O alagamento e a vida justificariam a pressa.
Senti-me pequeno demais para interferir no destino daquele imbuá, que fosse para colocá-lo no chão. Acho que ele caminhava nesse sentido. Um pouco afastado, torci por ele. Pra mim, chega a ter cheiro de poesia ser vizinho de uma família de imbuás.
Também na natureza a gente torce com ares de curiosidade. Fiquei olhando até que ele sumiu por detrás do sofá com jeito de montanha. E, na minha imaginação ele conseguiu encontrar animais solidários e salvou seus filhos e companheira.
segunda-feira, 26 de maio de 2008
É dando que se recebe
Ela só foi notada quando sua mãe voltava de uma viagem que fez a Fortaleza e o carro em que vinha capotou umas boas vezes. Exames médicos que deveriam dizer apenas se nada havia sido quebrado, encontraram Gigi, protegida pelo airbag da mãe, então com apenas dois meses de gestação.
Condenações. Mas ela nem é casada! Vai perder toda a juventude! Inquietações. Quem vai sustentar essa criança? Será que o pai vai assumir? Como vai reagir seu irmão ciumento? Tantas perguntas que nem poderiam ser respondidas dentro dos poucos meses até ela nascer. A mim a notícia também pegou de surpresa. Era a prima da minha idade com quem eu mais tinha aproximação, que fazia dupla comigo nos concursos de dança inventados na garagem de casa aos doze.
O semestre passou muito rápido e logo Giovanna chegou com a pele morena de uma legítima cabocla, tão informal quanto à denominação do seu cabelo: sarará. Era um verão e meus pais viraram seus padrinhos. Mais um laço e motivo para ela estar sempre no meio de nós.
Seu crescimento é acompanhado por mim apenas nos finais de semana. Sábados ou domingos que sempre me surpreendem. Quando está na companhia da avó seus cachos são domados. Quando a mãe não tem ajuda, a arapuca torna-se indomável. Uma juba que lhe é peculiar. Traça um pouco de sua personalidade. Quiçá por causa dela seja o centro das atenções. Dócil com os seus e arisca com visitas alheias.
Fui um desses intrusos por quase um ano. Tempo em que me dedicara a levantá-la até a altura da minha cabeça, colocando-a com o tronco para baixo e dizendo: faça agora a posição da bailarina. Querendo que ela, antes de gritar, pusesse as pernas para o alto, e porque não, fizesse uma ponta.
Via em seu olhar. Gigi me fuzilava sempre que eu me atrevia a repetir. Ia parar entre as pernas de alguém mais velho que pudesse lhe dar cobertura. Mas ela era tão graciosa e espontânea durante aqueles poucos segundos em que ficava no ar, que terminou seduzindo meus familiares. Todos se divertiam à custa da pequena.
Não tardou a ensaiar poucas palavras. Mas entre os convencionais: papai, mamãe e até vovó, tinha também “tiano” – eu, no caso – e “balarina”. A safada gostava e já fazia doce. E eu a tomava como se fosse preciso usar a força.
Em poucos meses “Xixi” – apelido carinhoso, acredite - ficou mais durinha e seu corpo perdeu um pouco da graça naquele movimento. Ela não só controlava bem as pernas para o alto, como conseguia erguer adestradamente todo o corpo e corria. Evolução acelerada pelo mundo dos adultos.
Ela encontra muito mais os tios que seus filhos ou quaisquer crianças da sua idade. Por isso, de quando em vez sai com uma frase de efeito. Sabe diagnosticar quando tentam lhe enganar e é infinitamente mais esperta do que eu para conseguir doces. No último feriado aconteceu um almoço festivo para celebrar o natalício de sua avó. Fomos todos.
Minha irmã, que acredito ansiar por ter filhos também, bajula a menina o tempo inteiro. A ponto de levar pirulitos na tentativa de arrancar um sorriso. Um me foi ofertado por Gigi. Era envolto por um papel branco e verde claro. Recebi, mas era apenas um. E não pude deixar de pôr a prova seu desprendimento.
Pedi primeiro o segundo. Ganhei outro verde e branco. Depois, queria um amarelo. E ganhei o amarelo. Pedi então o roxo e ela começou a olhar para os lados. Estava no meio de uma roda formada por mesas, cadeiras e muita gente. Enquanto dava um trago da minha bebida, estendeu o roxo em minha direção. Recebi com as mãos e os olhos bem abertos. A essa altura eu tinha três unidades, e ela também.
Pedi o quarto doce. Ela me veio com outro amarelo. Sabia que não iria muito longe e pedi o cor-de-rosa. A psicologia infantil deve explicar o motivo pelo qual as meninas têm essa preferência. A mim, bastava saber que aquele pedido iria ultrapassar a barreira da sua boa vontade. Ela olhou outra vez para os lados. O rosa eu vou chupar, disse tentando defender seu preferido. Insisti. Ganhei apoios. Todos queriam ver até onde ela iria.
Passaram-se uns trinta segundos e ela me deu. Em retribuição, lhe regalei todos os meus. Para segurá-los, ela usava as duas mãos numa reza. E seguiu em direção a minha irmã, que piscava o olho dando a dica. Era como dizer que me entregasse que ela teria ganharia muito mais. E foi assim que sua bolsa se abriu, mostrando um saco repleto de baganas. Já era depois do almoço e todas as guloseimas estavam permitidas.
Condenações. Mas ela nem é casada! Vai perder toda a juventude! Inquietações. Quem vai sustentar essa criança? Será que o pai vai assumir? Como vai reagir seu irmão ciumento? Tantas perguntas que nem poderiam ser respondidas dentro dos poucos meses até ela nascer. A mim a notícia também pegou de surpresa. Era a prima da minha idade com quem eu mais tinha aproximação, que fazia dupla comigo nos concursos de dança inventados na garagem de casa aos doze.
O semestre passou muito rápido e logo Giovanna chegou com a pele morena de uma legítima cabocla, tão informal quanto à denominação do seu cabelo: sarará. Era um verão e meus pais viraram seus padrinhos. Mais um laço e motivo para ela estar sempre no meio de nós.
Seu crescimento é acompanhado por mim apenas nos finais de semana. Sábados ou domingos que sempre me surpreendem. Quando está na companhia da avó seus cachos são domados. Quando a mãe não tem ajuda, a arapuca torna-se indomável. Uma juba que lhe é peculiar. Traça um pouco de sua personalidade. Quiçá por causa dela seja o centro das atenções. Dócil com os seus e arisca com visitas alheias.
Fui um desses intrusos por quase um ano. Tempo em que me dedicara a levantá-la até a altura da minha cabeça, colocando-a com o tronco para baixo e dizendo: faça agora a posição da bailarina. Querendo que ela, antes de gritar, pusesse as pernas para o alto, e porque não, fizesse uma ponta.
Via em seu olhar. Gigi me fuzilava sempre que eu me atrevia a repetir. Ia parar entre as pernas de alguém mais velho que pudesse lhe dar cobertura. Mas ela era tão graciosa e espontânea durante aqueles poucos segundos em que ficava no ar, que terminou seduzindo meus familiares. Todos se divertiam à custa da pequena.
Não tardou a ensaiar poucas palavras. Mas entre os convencionais: papai, mamãe e até vovó, tinha também “tiano” – eu, no caso – e “balarina”. A safada gostava e já fazia doce. E eu a tomava como se fosse preciso usar a força.
Em poucos meses “Xixi” – apelido carinhoso, acredite - ficou mais durinha e seu corpo perdeu um pouco da graça naquele movimento. Ela não só controlava bem as pernas para o alto, como conseguia erguer adestradamente todo o corpo e corria. Evolução acelerada pelo mundo dos adultos.
Ela encontra muito mais os tios que seus filhos ou quaisquer crianças da sua idade. Por isso, de quando em vez sai com uma frase de efeito. Sabe diagnosticar quando tentam lhe enganar e é infinitamente mais esperta do que eu para conseguir doces. No último feriado aconteceu um almoço festivo para celebrar o natalício de sua avó. Fomos todos.
Minha irmã, que acredito ansiar por ter filhos também, bajula a menina o tempo inteiro. A ponto de levar pirulitos na tentativa de arrancar um sorriso. Um me foi ofertado por Gigi. Era envolto por um papel branco e verde claro. Recebi, mas era apenas um. E não pude deixar de pôr a prova seu desprendimento.
Pedi primeiro o segundo. Ganhei outro verde e branco. Depois, queria um amarelo. E ganhei o amarelo. Pedi então o roxo e ela começou a olhar para os lados. Estava no meio de uma roda formada por mesas, cadeiras e muita gente. Enquanto dava um trago da minha bebida, estendeu o roxo em minha direção. Recebi com as mãos e os olhos bem abertos. A essa altura eu tinha três unidades, e ela também.
Pedi o quarto doce. Ela me veio com outro amarelo. Sabia que não iria muito longe e pedi o cor-de-rosa. A psicologia infantil deve explicar o motivo pelo qual as meninas têm essa preferência. A mim, bastava saber que aquele pedido iria ultrapassar a barreira da sua boa vontade. Ela olhou outra vez para os lados. O rosa eu vou chupar, disse tentando defender seu preferido. Insisti. Ganhei apoios. Todos queriam ver até onde ela iria.
Passaram-se uns trinta segundos e ela me deu. Em retribuição, lhe regalei todos os meus. Para segurá-los, ela usava as duas mãos numa reza. E seguiu em direção a minha irmã, que piscava o olho dando a dica. Era como dizer que me entregasse que ela teria ganharia muito mais. E foi assim que sua bolsa se abriu, mostrando um saco repleto de baganas. Já era depois do almoço e todas as guloseimas estavam permitidas.
sábado, 24 de maio de 2008
Desencontros e re-encontros
Era pra ser mais um encontro furtivo, apenas sexo. Por isso, vestiu-se de um de seus personagens. Fantasia que servia de subterfúgio na hora da conquista. Largava mão de ser mais natural e sedutor para barbarizar até sendo julgado pelos olhares mais libertos. Fatalmente deixaria rastro e gosto de bis. No outro, mais.
Ela foi vista ao longe, caminhando no sentido contrário da direção do seu carro. Tinha um estilo juvenil de se movimentar e vestir. Blusa listrada, moderadamente divertida, e jeans. Exalava um frescor que tinha no fundo os tons adocicados de baunilha e crepe de limão. Não poderia ser do tipo que fica por cima e deixa os olhos entreabertos enquanto geme.
Percebendo os faróis, voltou-se para ele e caminhou. Passos ligeiros. Parou adiante. Esperou abrir a janela do carro que tinha um fumê escuro. Vendo que não houve manifestação, segurou bem a maçaneta e levantou. Acabara de ser destravada. Sentou-se. Ao lado, nenhum gesto desejando boas vindas.
Ele estava verdadeiramente incomodado com sua presença. Com sua saúde e vigor. Pensou várias vezes em milésimos de segundo em gritar, expulsando-a. Conteve-se achando que poderia seduzir a jovem, aproveitar-se da sua libido e aumentar a coleção de conquistas.
A garota viajada escolheu um bar de paredes alaranjadas, com dardos, sinuca e uma mesa de poker. Nada mais sentar, pediu uma Stella Artois e propôs um brinde singelo: saúde! E seguiu primeiramente perguntando mais que falando de si. Cercava o território e seguia os passos daquele discurso com ares de emancipação. Sabia atrair as atenções e chegou a ser cortejada por um par de jogadores. Provocou. Mas reações não foram externadas.
A conversa foi regada por mais três garrafas. Depois de duas horas as portas começaram a ser baixadas. A ele faltava coragem de sair dali para um território mais privado, pago por hora de permanência. Entraram outra vez no carro, que girou em círculos pela cidade antes de parar de frente para a portaria do seu prédio, onde aconteceu um beijo clandestino.
Ele rolou na cama espaçosa. Dormiu pouco. E ligou bem cedo. Propôs um novo encontro. Sem armas, sem enfeites. Estava envolvido e tinha ganas de tomar dois tragos de vodka. Sendo ele, só assim se sentiria encorajado para deitar com ela. E o fez. Com corpos postos na horizontal e orvalhados, riram e sujaram os lençóis.
Ela foi deixada no portão. Não o beijou, nem ligou depois. E, tratado como um corpo, ele sentiu-se vitorioso pela primeira vez. Descobriu que o desejo maior de um corpo é tão somente ser abraçado.
Ela foi vista ao longe, caminhando no sentido contrário da direção do seu carro. Tinha um estilo juvenil de se movimentar e vestir. Blusa listrada, moderadamente divertida, e jeans. Exalava um frescor que tinha no fundo os tons adocicados de baunilha e crepe de limão. Não poderia ser do tipo que fica por cima e deixa os olhos entreabertos enquanto geme.
Percebendo os faróis, voltou-se para ele e caminhou. Passos ligeiros. Parou adiante. Esperou abrir a janela do carro que tinha um fumê escuro. Vendo que não houve manifestação, segurou bem a maçaneta e levantou. Acabara de ser destravada. Sentou-se. Ao lado, nenhum gesto desejando boas vindas.
Ele estava verdadeiramente incomodado com sua presença. Com sua saúde e vigor. Pensou várias vezes em milésimos de segundo em gritar, expulsando-a. Conteve-se achando que poderia seduzir a jovem, aproveitar-se da sua libido e aumentar a coleção de conquistas.
A garota viajada escolheu um bar de paredes alaranjadas, com dardos, sinuca e uma mesa de poker. Nada mais sentar, pediu uma Stella Artois e propôs um brinde singelo: saúde! E seguiu primeiramente perguntando mais que falando de si. Cercava o território e seguia os passos daquele discurso com ares de emancipação. Sabia atrair as atenções e chegou a ser cortejada por um par de jogadores. Provocou. Mas reações não foram externadas.
A conversa foi regada por mais três garrafas. Depois de duas horas as portas começaram a ser baixadas. A ele faltava coragem de sair dali para um território mais privado, pago por hora de permanência. Entraram outra vez no carro, que girou em círculos pela cidade antes de parar de frente para a portaria do seu prédio, onde aconteceu um beijo clandestino.
Ele rolou na cama espaçosa. Dormiu pouco. E ligou bem cedo. Propôs um novo encontro. Sem armas, sem enfeites. Estava envolvido e tinha ganas de tomar dois tragos de vodka. Sendo ele, só assim se sentiria encorajado para deitar com ela. E o fez. Com corpos postos na horizontal e orvalhados, riram e sujaram os lençóis.
Ela foi deixada no portão. Não o beijou, nem ligou depois. E, tratado como um corpo, ele sentiu-se vitorioso pela primeira vez. Descobriu que o desejo maior de um corpo é tão somente ser abraçado.
quinta-feira, 22 de maio de 2008
Os últimos dois anos e meio da vida de Fernando
Primeiro acreditou. Amou sem titubear. Teve medo. Foi traído. Descobriu. Perdoou. Não esqueceu. Enfrentou. Caminhou. Sempre lado a lado. Foi traído. Malogrado. Descobriu. Trancou-se. Quis terminar. Não entendeu. Aceitou. Preparou o café. Levou com cuidado. Chorou pitangas. E passou a ter mais zelo. Foi traído. Descobriu. Decidiu terminar. Deixou passar o tempo. Enxergou novas possibilidades. Provou delas. Gostou delas. Gozou delas. Enjoou delas. Dispensou-as. Viu seu desejo cruzar o semáforo. Com luvas e guarda-chuvas. Cortou o sinal. Encostou ao lado. Fez novas experimentações. Aos poucos. Trancou-se numa redoma. Perdeu o tempo. Tornou-se vulnerável. Acelerou. Esqueceu o breque. Entregou-se. Foi traído. Descobriu. Perdeu qualquer resquício de moralidade. Age como um fescenino. Seu corpo pede trégua. Quer massagens. Mensagens. Sinais. Consegue sempre. Realiza-se com a paisagem. Frisa. Grava. Ganha o dia por apenas um momento. Todos os dias. Fica satisfeito com pouco.
terça-feira, 20 de maio de 2008
Bem de perto
Só tem duas coisas que eu odeio mais que inhame. Comer inhame pela manhã ou comer inhame com ovo frito pela manhã. Mas minha mãe chegou hoje no meu apartamento com duas rodelas generosas e o argumento de que ela e meu pai, que fazem o desjejum todos os dias com esse banquete, não pegam sequer gripe há tempos.
Ela deve estar vivendo uma parada alternativa. A medicina oriental é que vêm defendendo o inhame para fortificar os gânglios linfáticos, os postos avançados de defesa do sistema imunológico.
Por primeiro tive de me recompor do susto que foi vê-la se movimentando pela casa às sete da manhã, enquanto eu cantarolava pelo corredor dos quartos em direção à cozinha. Imaginava minha tapioca com queijo de coalho, bem amanteigada. Depois, fingi ter comprado aquela idéia de saúde e bem estar.
Dona Nize guarda uma técnica antiga. Quando ela sabe que a escalada vai ser difícil trata de vir munida com cordas, fitas tubulares, cordeletes de cinco milímetros de diâmetro, mosquetões com rosca, botas, costura e de quebra um regalo tipo uma bandejinha com fundo de azulejo pintado à mão da última viagem. É assim desde que eu dei meu primeiro berro. Ponto pra ela que tem conseguido me dobrar com tanta astúcia.
Inspecionou os ambientes mais cercanos como a área de serviço e a dispensa. Apontou falhas de limpeza e organização bem na frente de Lucimar e chegou a reclamar da quantidade de manteiga colocada na frigideira. Nesse aparte tive de concordar que se ela vem fazendo isso há pelo menos um mês eu já devo estar gozando meus últimos dias, com o colesterol aos picos.
Foi-se depois que eu sentei para começar a comer. Mas não sem antes anunciar sua chegada amanhã , quando virá para ensinar a fazer o melhor filé ao molho madeira que eu já provei, com não sei que quantidade de suco de laranja e vinho de uva syrah.
Que salada! Ou seria cilada? Sim, sim. Em todo caso, essa história vai continuar. E qualquer semelhança com o post anterior não é mera coincidência.
Ela deve estar vivendo uma parada alternativa. A medicina oriental é que vêm defendendo o inhame para fortificar os gânglios linfáticos, os postos avançados de defesa do sistema imunológico.
Por primeiro tive de me recompor do susto que foi vê-la se movimentando pela casa às sete da manhã, enquanto eu cantarolava pelo corredor dos quartos em direção à cozinha. Imaginava minha tapioca com queijo de coalho, bem amanteigada. Depois, fingi ter comprado aquela idéia de saúde e bem estar.
Dona Nize guarda uma técnica antiga. Quando ela sabe que a escalada vai ser difícil trata de vir munida com cordas, fitas tubulares, cordeletes de cinco milímetros de diâmetro, mosquetões com rosca, botas, costura e de quebra um regalo tipo uma bandejinha com fundo de azulejo pintado à mão da última viagem. É assim desde que eu dei meu primeiro berro. Ponto pra ela que tem conseguido me dobrar com tanta astúcia.
Inspecionou os ambientes mais cercanos como a área de serviço e a dispensa. Apontou falhas de limpeza e organização bem na frente de Lucimar e chegou a reclamar da quantidade de manteiga colocada na frigideira. Nesse aparte tive de concordar que se ela vem fazendo isso há pelo menos um mês eu já devo estar gozando meus últimos dias, com o colesterol aos picos.
Foi-se depois que eu sentei para começar a comer. Mas não sem antes anunciar sua chegada amanhã , quando virá para ensinar a fazer o melhor filé ao molho madeira que eu já provei, com não sei que quantidade de suco de laranja e vinho de uva syrah.
Que salada! Ou seria cilada? Sim, sim. Em todo caso, essa história vai continuar. E qualquer semelhança com o post anterior não é mera coincidência.
segunda-feira, 19 de maio de 2008
Como um patriarca
Invertemos os papéis. Não que meus pais hoje sejam meus filhos. Nem que eu tenha de me preocupar com o plano de saúde deles. Mas, há pouco mais de um mês minhas atenções se voltaram para a vida dos que moram distante duas ruas do meu apartamento.
Naquela casa onde passei minha infância, minha adolescência e onde, mesmo havendo harmonia familiar, percebi o quão é difícil aprender a viver em sociedade, hoje sobra muito espaço. E nem é apenas físico.
Há uns quatro anos, quando deixei de dormir e debaixo daquele teto, resistiam ali mais dois irmãos – que inclusive se parecem bem mais que qualquer deles a mim. Naquela época, minha rotina é que havia sido mais afetada. Tive de aprender a conviver com o silêncio, momentos em que me deparei sozinho com minha consciência e passei a me analisar e até condenar. Penas leves, claro. Eu aprendo fácil.
No meu espaço aprendi também a aproveitar bem cada ambiente. Como reflexo, até hoje não consigo conjecturar a possibilidade de voltar a ter uma televisão no quarto. Acho que é uma violência tão grande quanto ter um microondas em cima do criado mudo. Enfim, é pra isso que existem as cozinhas, salas etc.
Meus pais e meus irmãos mantiveram a mesma logística. De quando em vez tomavam café da manhã em horários distintos. Meu irmão mais novo esporadicamente sentava ao redor da mesa na hora do almoço. Comia o que ninguém tinha no prato. Cada um regulava seu jantar, graças às aulas, saídas noturnas e sem-vergonhices.
Botando banca, com ares de independência saindo pelas ventas, sempre acreditei que só poderia ir lá quando fosse convidado. Aquela não era mais minha casa, apesar de ter as chaves das portas no meu mói até hoje. Passei a comer em restaurantes rápidos e ganhei de quebra uns bons seis quilos. É aquela história, muita variedade, olho gordo.
Minhas visitas aconteciam mais na hora do almoço. Sempre foi conveniente, afinal é bom sentir o tempero da mama e, de quebra, ver todos de uma vez. Importante também participar das discussões que acontecem nesse momento. De um se meter na vida do outro por simples bem querer ou por hábito, por liberdade.
No veraneio também não tenho tipo muito como privar da companhia dos meus. Trabalhos e outras atividades inviabilizam a corrida para o litoral. De modo que passado o carnaval, fui a um desses almoços festivos. Minha irmã de casamento marcado. E dali a pouco, um mês depois, seu nome já tinha aumentado.
Minha mãe passou a me ligar mais. Como apenas dois quarteirões nos separam, aparecer por lá está mais fácil. Mas meu pai tem prolongado os papos ao telefone também. E quando me vê puxa uns assuntos estranhos, incomuns nesses mais de 20 anos.
No último final de semana eles ligaram pra me avisar que fariam uma viagem. Saíram quando tudo estava escuro, na quarta e a volta estava programada para o domingo. Era o casamento de uns amigos em São Luís.
Na sexta recebi outra ligação. Meu pai estava preocupado com o cachorro de 14 anos, caçula da família. Ele ficara só com meu irmão que mal cuida de si. Não devia ter água, tampouco comida. E a casa, com montes de caca e manchas de mijo.
Deixei um par de compromissos de lado para averiguar a situação, completamente outra, diga-se. O bicho não havia tocado na ração, nem bebido. Sem condições de qualquer excreção, óbvio. Trouxe-o para almoçar comigo, ele do lado da mesa, pulando no nosso colo, como sempre foi.
No meio da refeição, o telefone tocou outra vez. Meu irmão deu falta do Jheepy. Ligou para o meu pai num impulso - se tivesse parado pra pensar jamais faria isso por receio de perder o saco, enfim – e por isso o meu celular estava aos berros. Fiquei um pouco incomodado com tanta preocupação. Trouxe-o comigo, disse, completando que estava de saída para o trabalho e o deixaria de volta. Assim foi.
Tive uns minutos de responsabilidade sobre o estado emocional dos meus pais. Quando o ponteiro do relógio alcançou às seis horas da manhã do domingo estava eu passeando com o cachorro pela praça. Tive um pouco de dor de cabeça. Acho que de tanto gritar, já que pela idade ele está com a visão, o olfato e a audição prejudicados. Mas acompanhei com toda a paciência. Assim, cuidei do meu pai, que deve ter ficado mais sossegado e de minha mãe, que, sem ouvir queixas, provavelmente curtiu mais os dias fora.
Restabelecida a rotina, não me sai da cabeça a idéia de que eles estão tendo dificuldades em exercitar o desapego. Filhos os criam para o mundo. Mesmo sabendo que olhares analisam a mesma situação de formas diferentes, com mais ou menos experiência. Quiçá netos amenizassem esse problema. Pode estar por vir mais uma cobrança.
Naquela casa onde passei minha infância, minha adolescência e onde, mesmo havendo harmonia familiar, percebi o quão é difícil aprender a viver em sociedade, hoje sobra muito espaço. E nem é apenas físico.
Há uns quatro anos, quando deixei de dormir e debaixo daquele teto, resistiam ali mais dois irmãos – que inclusive se parecem bem mais que qualquer deles a mim. Naquela época, minha rotina é que havia sido mais afetada. Tive de aprender a conviver com o silêncio, momentos em que me deparei sozinho com minha consciência e passei a me analisar e até condenar. Penas leves, claro. Eu aprendo fácil.
No meu espaço aprendi também a aproveitar bem cada ambiente. Como reflexo, até hoje não consigo conjecturar a possibilidade de voltar a ter uma televisão no quarto. Acho que é uma violência tão grande quanto ter um microondas em cima do criado mudo. Enfim, é pra isso que existem as cozinhas, salas etc.
Meus pais e meus irmãos mantiveram a mesma logística. De quando em vez tomavam café da manhã em horários distintos. Meu irmão mais novo esporadicamente sentava ao redor da mesa na hora do almoço. Comia o que ninguém tinha no prato. Cada um regulava seu jantar, graças às aulas, saídas noturnas e sem-vergonhices.
Botando banca, com ares de independência saindo pelas ventas, sempre acreditei que só poderia ir lá quando fosse convidado. Aquela não era mais minha casa, apesar de ter as chaves das portas no meu mói até hoje. Passei a comer em restaurantes rápidos e ganhei de quebra uns bons seis quilos. É aquela história, muita variedade, olho gordo.
Minhas visitas aconteciam mais na hora do almoço. Sempre foi conveniente, afinal é bom sentir o tempero da mama e, de quebra, ver todos de uma vez. Importante também participar das discussões que acontecem nesse momento. De um se meter na vida do outro por simples bem querer ou por hábito, por liberdade.
No veraneio também não tenho tipo muito como privar da companhia dos meus. Trabalhos e outras atividades inviabilizam a corrida para o litoral. De modo que passado o carnaval, fui a um desses almoços festivos. Minha irmã de casamento marcado. E dali a pouco, um mês depois, seu nome já tinha aumentado.
Minha mãe passou a me ligar mais. Como apenas dois quarteirões nos separam, aparecer por lá está mais fácil. Mas meu pai tem prolongado os papos ao telefone também. E quando me vê puxa uns assuntos estranhos, incomuns nesses mais de 20 anos.
No último final de semana eles ligaram pra me avisar que fariam uma viagem. Saíram quando tudo estava escuro, na quarta e a volta estava programada para o domingo. Era o casamento de uns amigos em São Luís.
Na sexta recebi outra ligação. Meu pai estava preocupado com o cachorro de 14 anos, caçula da família. Ele ficara só com meu irmão que mal cuida de si. Não devia ter água, tampouco comida. E a casa, com montes de caca e manchas de mijo.
Deixei um par de compromissos de lado para averiguar a situação, completamente outra, diga-se. O bicho não havia tocado na ração, nem bebido. Sem condições de qualquer excreção, óbvio. Trouxe-o para almoçar comigo, ele do lado da mesa, pulando no nosso colo, como sempre foi.
No meio da refeição, o telefone tocou outra vez. Meu irmão deu falta do Jheepy. Ligou para o meu pai num impulso - se tivesse parado pra pensar jamais faria isso por receio de perder o saco, enfim – e por isso o meu celular estava aos berros. Fiquei um pouco incomodado com tanta preocupação. Trouxe-o comigo, disse, completando que estava de saída para o trabalho e o deixaria de volta. Assim foi.
Tive uns minutos de responsabilidade sobre o estado emocional dos meus pais. Quando o ponteiro do relógio alcançou às seis horas da manhã do domingo estava eu passeando com o cachorro pela praça. Tive um pouco de dor de cabeça. Acho que de tanto gritar, já que pela idade ele está com a visão, o olfato e a audição prejudicados. Mas acompanhei com toda a paciência. Assim, cuidei do meu pai, que deve ter ficado mais sossegado e de minha mãe, que, sem ouvir queixas, provavelmente curtiu mais os dias fora.
Restabelecida a rotina, não me sai da cabeça a idéia de que eles estão tendo dificuldades em exercitar o desapego. Filhos os criam para o mundo. Mesmo sabendo que olhares analisam a mesma situação de formas diferentes, com mais ou menos experiência. Quiçá netos amenizassem esse problema. Pode estar por vir mais uma cobrança.
domingo, 18 de maio de 2008
Primeira parcial
Acordo novamente às seis horas da manhã e chego rapidamente à conclusão de que estou velho. A mesma cena se repete há mais de um mês. É como se eu tivesse a idade do meu pai e a falta de disposição de sair para tomar uma cerveja com meus amigos num dia qualquer, ou mesmo em um final de semana.
Lucimar já está acordada e me prepara um café. Hoje prefiro com leite e o bebo de frente para o computador. É como uma necessidade de auto-afirmação. De um ser que é diferente do seu genitor, que ainda lê o jornal sentado no sofá. Mudando apenas o canal parece que me vêm um ar de modernidade.
Mas nessa manhã, as notícias não chegaram até a máquina que agora uso para escrever esse registro. Nenhuma informação importante de fora do meu mundo de alguns metros quadrados onde me protejo dos temporais e quaisquer outros fenômenos climáticos. Assim espero.
A assinatura do serviço de internet está paga. O provedor idem. Tudo nos conformes não fosse o teclado do computador que amanheceu, para meu desconforto, com funções estranhas. Números ao invés de letras, o que me impedia de digitar corretamente a direção do sitio a localizar no espaço virtual.
Ligo para o Marcelo – um amigo que não sei como, consegue acompanhar as novidades tecnológicas com sede. Ligo imediatamente sempre que acontece algum desentendimento entre mim e o meu portátil. Em outra circunstância tal gesto poderia ser interpretado como tráfico de influências, já que, não conseguindo manter um bom diálogo, por vezes o trato como se ele tivesse de funcionar como um funcionário público. Mesmo sabendo que ele faz corpo mole e, pra me provocar, trava. Eu exijo sempre mais.
Ainda há o agravante desse benefício não servir apenas a mim, mas também ao meu subordinado, o que poderia, num julgamento nos aumentar a pena de reclusão - distanciamento vá lá! – da metade. Mas, enfim, desse modo convivemos.
Pacientemente meu amigo-técnico-conselheiro pediu para que eu reinicializasse – começamos sempre com o óbvio. Não deu certo, lhe disse, completando que se fosse tão simples eu mesmo teria resolvido.
Então vá até o painel de controle, depois escolha opções regionais e de idioma. Vai abrir outra janela. Está vendo a aba idiomas?
Sim.
Escolha ela, clique em detalhes e me diga o que aparece em idioma de entrada padrão.
Inglês – Estados Unidos (internacional).
Seu note book tem a tecla ç?
Não.
Então vamos reconfigurar, disse num tom de diagnóstico.
Mais alguns procedimentos e adicionamos e excluímos alguns serviços de texto e de teclado. Entrou Brasil (ABNT) e mais uma vez Estados Unidos (internacional). Depois de aplicar, por recomendação, reiniciei outra vez.
Não deu certo. E agora? Tem alguma outra opção?
Vamos ver se você fez tudo certo. Seu computador é um Vaio?
É, respondi.
Vou pegar então o meu, que é da mesma marca e deve estar configurado corretamente.
Fizemos mais umas quatro tentativas dentro do tempo de aproximadamente uma hora. Exausto, tendo ingerido mais duas xícaras com cafeína e quase em estado depreciativo, reclamei. Olha, ontem desliguei esse computador normalmente e parece que ele tem vida própria, amanhece o dia com enxaqueca. É temperamental demais pra mim. Já tentei digitar várias palavras e percebi que o problema atinge principalmente as vogais, que viraram números, comentei displicentemente.
Que vogais?
Deixe-me ver. Bom, o a é a mesmo. O e é e. O i agora é o cinco. O o, seis e o u, quatro.
No seu teclado tem uns números bem pequenos no canto direito de cada uma dessas teclas que você acabou de me dizer?
Pode parecer um contra-senso, mas eles estavam gravados em um amarelo discreto que ficava praticamente camuflado com o cinza do teclado. Sem meus óculos – que foram furtados juntamente com minha bolsa, outro dia enquanto trabalhava – quase encostei o nariz para conseguir ver os tais números. Tem sim, Marcelo, falei.
Então provavelmente você vai encontrar uma luz verde acesa perto de um número um, que fica dentro de um desenho que parece uma bolsa, no canto esquerdo, perto da saída de som. Olhei rapidamente e vi.
Gosto de precisão.
Agora procure na parte de cima uma tecla com as iniciais Num Lk. Você só precisa apertar lá.
Pela vigésima vez, procedi como me orientou.
A luz verde apagou?
Depois de um período de vacância, demorei uns cinco segundo para conseguir pronunciar, entre gaguejos, a extensa palavra de uma única sílaba: sim.
Agora veja se tudo funciona, disse do outro lado da linha.
Precisei de mais tempo para ver que funcionava, acreditar que funcionava, me perguntar se aquela uma hora perdida me faria falta, como deveria reagir para que não parecesse irracional, abstrair minha perplexidade. Repeti: sim.
Ouvi uma gargalhada e tive vontade de cortar os pulsos em asterisco. Ele se divertiu com a situação. Desligamos e decidi não mexer mais naquilo por 24 horas. Teria de me dar um espaço. Tipo recuperação. Saí arfando.
Preciso encontrar uma forma de criar alguma aproximação com esse universo tecnológico ou vou acabar, na verdade, como o meu avô, que pra mim é um grande exemplo de raciocínio lógico jogando buraco. Mas que não tem interesse, e, por conseguinte, nem iniciativa de tentar ampliar seu leque de relacionamentos.
Eu e meu computador já nos desentendemos outras vezes. Sempre quando eu mais preciso dele. Nessas ocasiões travamos verdadeiras disputas. Fazendo uma parcial, estou como o América na segunda divisão. Perdendo sempre e com receio de ser rebaixado outra vez.
Lucimar já está acordada e me prepara um café. Hoje prefiro com leite e o bebo de frente para o computador. É como uma necessidade de auto-afirmação. De um ser que é diferente do seu genitor, que ainda lê o jornal sentado no sofá. Mudando apenas o canal parece que me vêm um ar de modernidade.
Mas nessa manhã, as notícias não chegaram até a máquina que agora uso para escrever esse registro. Nenhuma informação importante de fora do meu mundo de alguns metros quadrados onde me protejo dos temporais e quaisquer outros fenômenos climáticos. Assim espero.
A assinatura do serviço de internet está paga. O provedor idem. Tudo nos conformes não fosse o teclado do computador que amanheceu, para meu desconforto, com funções estranhas. Números ao invés de letras, o que me impedia de digitar corretamente a direção do sitio a localizar no espaço virtual.
Ligo para o Marcelo – um amigo que não sei como, consegue acompanhar as novidades tecnológicas com sede. Ligo imediatamente sempre que acontece algum desentendimento entre mim e o meu portátil. Em outra circunstância tal gesto poderia ser interpretado como tráfico de influências, já que, não conseguindo manter um bom diálogo, por vezes o trato como se ele tivesse de funcionar como um funcionário público. Mesmo sabendo que ele faz corpo mole e, pra me provocar, trava. Eu exijo sempre mais.
Ainda há o agravante desse benefício não servir apenas a mim, mas também ao meu subordinado, o que poderia, num julgamento nos aumentar a pena de reclusão - distanciamento vá lá! – da metade. Mas, enfim, desse modo convivemos.
Pacientemente meu amigo-técnico-conselheiro pediu para que eu reinicializasse – começamos sempre com o óbvio. Não deu certo, lhe disse, completando que se fosse tão simples eu mesmo teria resolvido.
Então vá até o painel de controle, depois escolha opções regionais e de idioma. Vai abrir outra janela. Está vendo a aba idiomas?
Sim.
Escolha ela, clique em detalhes e me diga o que aparece em idioma de entrada padrão.
Inglês – Estados Unidos (internacional).
Seu note book tem a tecla ç?
Não.
Então vamos reconfigurar, disse num tom de diagnóstico.
Mais alguns procedimentos e adicionamos e excluímos alguns serviços de texto e de teclado. Entrou Brasil (ABNT) e mais uma vez Estados Unidos (internacional). Depois de aplicar, por recomendação, reiniciei outra vez.
Não deu certo. E agora? Tem alguma outra opção?
Vamos ver se você fez tudo certo. Seu computador é um Vaio?
É, respondi.
Vou pegar então o meu, que é da mesma marca e deve estar configurado corretamente.
Fizemos mais umas quatro tentativas dentro do tempo de aproximadamente uma hora. Exausto, tendo ingerido mais duas xícaras com cafeína e quase em estado depreciativo, reclamei. Olha, ontem desliguei esse computador normalmente e parece que ele tem vida própria, amanhece o dia com enxaqueca. É temperamental demais pra mim. Já tentei digitar várias palavras e percebi que o problema atinge principalmente as vogais, que viraram números, comentei displicentemente.
Que vogais?
Deixe-me ver. Bom, o a é a mesmo. O e é e. O i agora é o cinco. O o, seis e o u, quatro.
No seu teclado tem uns números bem pequenos no canto direito de cada uma dessas teclas que você acabou de me dizer?
Pode parecer um contra-senso, mas eles estavam gravados em um amarelo discreto que ficava praticamente camuflado com o cinza do teclado. Sem meus óculos – que foram furtados juntamente com minha bolsa, outro dia enquanto trabalhava – quase encostei o nariz para conseguir ver os tais números. Tem sim, Marcelo, falei.
Então provavelmente você vai encontrar uma luz verde acesa perto de um número um, que fica dentro de um desenho que parece uma bolsa, no canto esquerdo, perto da saída de som. Olhei rapidamente e vi.
Gosto de precisão.
Agora procure na parte de cima uma tecla com as iniciais Num Lk. Você só precisa apertar lá.
Pela vigésima vez, procedi como me orientou.
A luz verde apagou?
Depois de um período de vacância, demorei uns cinco segundo para conseguir pronunciar, entre gaguejos, a extensa palavra de uma única sílaba: sim.
Agora veja se tudo funciona, disse do outro lado da linha.
Precisei de mais tempo para ver que funcionava, acreditar que funcionava, me perguntar se aquela uma hora perdida me faria falta, como deveria reagir para que não parecesse irracional, abstrair minha perplexidade. Repeti: sim.
Ouvi uma gargalhada e tive vontade de cortar os pulsos em asterisco. Ele se divertiu com a situação. Desligamos e decidi não mexer mais naquilo por 24 horas. Teria de me dar um espaço. Tipo recuperação. Saí arfando.
Preciso encontrar uma forma de criar alguma aproximação com esse universo tecnológico ou vou acabar, na verdade, como o meu avô, que pra mim é um grande exemplo de raciocínio lógico jogando buraco. Mas que não tem interesse, e, por conseguinte, nem iniciativa de tentar ampliar seu leque de relacionamentos.
Eu e meu computador já nos desentendemos outras vezes. Sempre quando eu mais preciso dele. Nessas ocasiões travamos verdadeiras disputas. Fazendo uma parcial, estou como o América na segunda divisão. Perdendo sempre e com receio de ser rebaixado outra vez.
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