sexta-feira, 12 de julho de 2013

Princesa Violeta


Sheron Menezzes é testemunha de que a boa prática da atuação exige do profissional lições básicas de empreendedorismo. Na rotina de quem dá vida a personagens a inspiração é a menor parcela. Quase todo o processo é de transpiração, muito trabalho. E é preciso saber também que qualquer história, por mais desenhada que pareça, pode ser contada de várias maneiras. Longe dos holofotes ela faz sua parte: ajuda crianças carentes, a maioria negras, a se livrar do estereótipo abjeto. Mostra que a imagem preconcebida não é uma mentira, mas não passa de um desenho incompleto.


Foi a matriarca da família Menezes, a professora Veralinda, quem criou a personagem Princesa Violeta, inspirada em Sheron. É com ela que mãe e filha trabalham juntas um projeto de responsabilidade social, aplicado em escolas da rede pública. A iniciativa visa a inclusão de meninas em idade escolar através do incentivo a leitura.
“Quando a gente vê essas jovens, quase todas negras e de família pobre, nota logo que elas não imaginam que poderiam ser princesas de verdade. Realmente as meninas não tem como ser a Cinderela ou a Branca de Neve, mas elas podem ser a Princesa Violeta. Existe uma identificação com o universo delas. Nunca tive nenhum problema com preconceito porque eu me aceito e me amo e isso exala. Acho que a auto-estima tem de ser trabalhada desde cedo pra que elas cresçam se sentido bem, sem querer alisar o cabelo ou se pintar com maquiagem pra tentar ficar com a pele mais clara. Infelizmente ainda existe muito disso”, comenta.
Esse mesmo pensamento tem a escritora Chimamanda Adichie. Palestrando mundo afora, essa africana fala sobre o que chama de “o perigo da história única.” Conta que foi uma leitora precoce e começou a escrever muito cedo também, aos sete anos. Suas personagens eram invariavelmente loiras, de olhos azuis, comiam maçãs e ficavam felizes quando fazia sol. Tudo eram apenas uma reprodução da literatura que ela consumia, não importando que ao seu redor as crianças chupassem magas e todos os dias fizesse bom tempo. Naquela iniciação, era como se os africanos não tivessem espaço nos livros.
Só quando conheceu os escritores do seu país e pôde frequentar una universidade nos Estados Unidos, se apercebeu de novas versões, analisando o quão somos vulneráveis face a uma história. No outro continente ela se deparou com novos olhares estreitos, como o de uma aluna da mesma sala que ficou espantada com o domínio de Adichie falando em inglês, sem saber que esse é o idioma oficial da Nigéria, onde ela nasceu. O retrato da sua pátria que é passado por muitas mídias, ela reconhece, é de belos animais e pessoas morrendo de fome e em decorrência da AIDS. Mas, ao mesmo tempo, a escritora defende: existe além. Abreviando o discurso, sem tanto prejuízo para a verdade, se conclui que uma história única rouba a dignidade das pessoas. E a mesma história que destrói, também pode reparar a dignidade perdida.
Sheron também não negligencia. Dona de muita energia, distribui sua força em mais de uma dezena de projetos sociais, não apenas com crianças, mas com animais. Nos últimos tempos resgatou quatro das ruas. Um deles mora com a mãe e os outros dividem espaço com a atriz no seu apartamento no Rio. Os bichos ganharam nomes divertidos, verdadeiros chistes. Tripé é um gato de três patas e os dois cães homenageiam Frida Kahlo e Fidel Castro. Batata Frida e Fidel Castrado contribuem com a veia mais atuante de Sheron: cuidar dos animais. “Minha preocupação com o outro é natural. Mas antes de abraçar uma causa, tomo meus cuidados. É importante saber se uma entidade é crível. Afinal, ela só consegue se projetar e ampliar o trabalho se as pessoas conhecem, acreditam e ajudam”, destaca.

Rotina

Parece não ter onde caber, mas Sheron Menezzes ainda encontra disposição para outras atividades. Corre, pratica ioga, kickbox (sim, ela já se machucou. Torceu o pé pouco antes do carnaval deste ano e mesmo assim desfilou) e ainda se divide entre palcos, televisão e o que mais pintar. Atualmente está em cartaz com a peça Açaí e Dedos e ainda conciliou teatro com a novela “Aquele Beijo”, de Miguel Falabella. A morena viveu Grace Kelly, uma jovem que foi abandonada pela mãe e cresceu num orfanato. Foi o primeiro papel de vilã da carreira. “Ela acha que já sofreu muito e merece vencer na vida. Não tem escrúpulos e acredita que está certa em ter tanta ambição. É um desafio”, diz.
Sheron é de fases. Fã de Billie Holiday,  está apaixonada por Nina Simone. “Eu sou do blues e do jazz, mas a gente tem vários momentos na vida e de vez em quando ouço outras coisas”, revela. O que não tem jeito de mudar é a maneira de se vestir. Ela acredita que estilo é ter autenticidade. O cabelo crespo e o tom da pele são destaque. E, com eles em evidência, realmente dá pra compor um visual com pouco. “Ninguém acredita que eu sou básica, mas acho que sou assim porque minha herança genética tem uma exuberância natural. Qualquer coisa que ponho a mais pode parecer excesso. Como trabalho com imagem, procuro estar atenta a toas as tendências, mas não sigo moda. Eu sei o que está na moda e incorporo uma ou outra peça.  Me incomoda ver todo mundo igual.”
Cá entre nós, básica como for, essa princesa merece o trono.

*Matéria publicada na primeira edição da LivingFor.
Fotos: Giovanna Hackradt.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Bem aventurada esquizofrenia


"As atuais evidências relativas às causas da esquizofrenia são um mosaico: a única coisa clara é a constituição multifatorial da esquizofrenia. É provavelmente um grupo de doenças relacionadas, algumas causadas por um fator, outras, por outros fatores", descreve a neurocientista e neuropsiquiatra Nancy Andreasen Coover em um dos seus vários estudos acadêmicos. Transportando o termo para a o universo artístico, o cantor Edson Cordeiro encontra em si muitas semelhanças. Ele também é uma obra composta de pequenos fragmentos. E essa construção sofre interferência constante da luz dos palcos e da solar – e também da falta dela.


Desde 1994 foram várias ida e vindas. Edson Cordeiro, 44, já era um artista consagrado no Brasil quando começou a excursionar pela Europa. Como os trajetos, passaram-se alguns anos até que decidisse de vez que deveria partir para outro desafio e fixar residência na Alemanha, onde, morando há cinco anos, gravou dois álbuns de música clássica e vem sendo considerado pela crítica como “a oitava maravilha do mundo.” Por aqui ele também não precisa exercitar a modéstia quando se trata de qualidade musical. Já no seu primeiro disco, gravando uma miscelânea que inclui Nina Hagen, Janis Joplin e Mozart, conseguiu passar da marca de cem mil copias.
“Não senti falta de espaço no meu país. Aqui eu sou a prova de que boa música também vende. Na era da internet e da pirataria, consegui marcas de vendagem importantes. Então, eu não fui exilado. Eu não teria ido à Europa se o Brasil não tivesse dito sim pra mim antes. A Alemanha disse sim depois. Fico muito feliz por isso e tenho orgulho de dizer que meu país sempre me reconheceu, desde quando eu cantava na rua”, diz, relembrando a época em que se apresentava pelas avenidas do Centro de São Paulo por aplausos e trocados e, agora, comemorando ter constituído duas equipe, uma em cada país. “Quero fazer tudo que gosto sem ter de abandonar meu público. Atualmente eu tenho um bom agente aqui. Vai ficar mais fácil vir outras vezes ao Brasil.”
Ter duas bandas também permite ao cantor se entregar sem cerimônia a estilos completamente diferentes. Aliás, quem tem mais de 25 anos certamente já viu que ele é capaz de tudo: cantar disco music, fazer releituras de clássicos da MPB e até transformar em marchinha carnavalesca o maior hino gay: I Will survive. “Não tenho um gênero preferido. O que gosto é de ser livre, apesar de pagar um preço alto por isso. Mas eu quero o ônus e o bônus mesmo. E sei que tenho sendo essa esquizofrenia toda. Alguém pode até dizer que de outra maneira seria melhor, mas é assim que eu sou e só assim que sei ser”, dispara.


"Não fui exilado. Eu não teria ido à Europa se o Brasil não tivesse dito sim pra mim antes. A Alemanha disse sim depois. Fico muito feliz por isso e tenho orgulho de dizer que meu país sempre me reconheceu, desde quando eu cantava na rua”
Edson Cordeiro, cantor.

Nas últimas apresentações feitas por esses lados, Edson Cordeiro homenageou grandes vozes femininas, entre elas Billie Holiday, Edith Piaf e Elis Regina. Os arranjos foram feitos a quatro mãos, em parceria com o pianista clássico Antônio Vaz Lemes, e são um resgate: uma espécie de comemoração pelos 25 anos de carreira. “Não estou mostrando nada inédito. Como faz muito tempo que eu não vinha ao Brasil, esse reencontro é como um de família. A gente quer contar o que fez, o que está fazendo, sem maiores preocupações com renovação. É pra matar a saudade.” Foi no dia de uma dessa apresentações, no Teatro Riachuelo, em Natal, que o cantor abriu espaço para Living acompanhar um dos ensaios.
No meio da passagem de som ele se mostrou, por repetidas vezes, preocupado com o ar condicionado e a possibilidade de o frio fazê-lo perder a voz. Parou em três momentos e pediu para regularem a temperatura. Para enfrentar o rigoroso inverno europeu, Edson se resguarda com muitas camadas de roupa. “Do frio a gente se protege com um monte de coisa que existe para colocar por cima. O que eu estranho no frio é a escuridão. Eu sou uma figura solar. Quero e consigo passar nos shows o meu estado de espírito, minhas depressões e minhas alegrias. A música serve pra isso e eu respeito o que canto”, disse, destacando como sorte o fato de a última temporada ter incluído mais cidades da região Nordeste.
Embora tenha passado metade da última década afastado dos palcos brasileiro, é aqui que ele convive mais diretamente com o assédio. “Na minha carreira internacional eu descobri que não tenho de aguentar uma superexposição para poder trabalhar. Na Alemanha eu posso até andar de metrô sem ser abordado, mas quando vou ao teatro está tudo lotado. No Brasil quem não está na televisão é como se não existisse. Eu adoro o assédio dos fãs e da imprensa, mas não quero ser refém. Eu não sou ator de novela. Meu trabalho tem de ir além da televisão. Adoro o veículo em si e sei fazer muito bem, embora ache que as vezes essa roda vida é muito cruel. Bom, mas se é esse aval que as pessoas precisam, estarei lá.”


Um dos encontros mais marcantes da carreira de Edson Cordeiro aconteceu com Cássia Eller. Enquanto ele fazia a voz feminina na ópera Flauta Mágica, de Mozart, ela atacava de Satisfaction, dos Rolling Stones. “A voz dele vai de soprano ligeiro a Barítono sem qualquer problema (...) um susto no público e na crítica”, foi dito no programa Fantástico, da Rede Globo, quando o clip oficial foi mostrado pela primeira vez em cadeia nacional.

Fotos: Ney Douglas
*Matéria publicada na primeira edição da revista LivingFor, com o título: Esquizofrenia ambulante.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Clarice Falcão


Oscilo entre “Uma canção sobre amor, ah o amor...” e “Eu esqueci você”. Não consigo me decidir sobre a maior das fiúzas criadas por Clarice Falcão para cantar o fatal, cercado de imprevistos cômicos.
Atriz, roteirista, cantora, tragicômica. Clarice faz parte de uma leva de jovens bem aventurados pelas ondas da internet, onde disponibiliza seu primeiro trabalho solo: Monomania.


Baixe aqui para descobrir o talento da gaja que não é mostrado na Porta dos Fundos.

Foto: divulgação

Hibridismo em cena


As cortinas estão abertas, mas é como se abrissem e fechassem. Beth Goulart revela e suprime nuances de Clarice Lispector. Também se mostra no placo e se esconde para que outras surjam. É como se fosse uma brincadeira infantil, jogo que a atriz defende acontecer desde a idade mais tenra: como a leitura de pai para filho, a apresentação do mundo dos livros.


Numa sociedade de forte cultura de criação de mitos, Beth Goulart passou por um longo processo de angústia até colocar em cena uma das mulheres que mais admira. Foram exatos dois anos de buscas, leituras de teses e análises de entrevistas e os mais diversos materiais até concluir a feitura do espetáculo “Simplesmente eu, Clarice Lispector”.
Nele há muitas sutilezas, pouca desconstrução. São subterfúgios para não expor a vida sobre a obra, maior legado da escritora nascida na Ucrânia e criada nos arredores de Recife e do Rio de Janeiro. No teatro não são contadas passagens marcantes da vida de Clarice como o incêndio provocado por um cigarro aceso durante a madrugada e que, dormido entre os dedos, terminou por cair sobre o colchão.
O episódio de 14 de setembro de 1966 que a deixou três dias internada sob risco iminente de morte e mais dois meses hospitalizada, com inúmeras queimaduras pelo corpo, profundas cicatrizes na alma e por pouco não lhe amputou a mão direita, não é explícito, apesar de Beth deixar a mão retraída ao admitir essa “persona”, como costuma dizer.
“Eu falo dos momentos mais difíceis com muita delicadeza ou quase não falo: eu mostro. Costumo dizer que quem conhece a Clarice, reconhece. Quem não a conhece, passa a conhecer. Meu interesse nunca foi contar a história de uma forma linear e biográfica. Dou fragmentos, pistas sobre a vida e a obra dela para que cada um faça seu encaixe.”
Os argumentos de Beth encontram palavras de outro artista. As do bailarino Kazuo Ohno, figura máxima da dança-teatro expressionista conhecida como butô. O mestre desse estilo surgido na vanguarda japonesa dos anos de 1950, como resposta ao terror da bomba de Hiroshima – que começou a dançar tardiamente, aos 43 anos, e fez isso inclusive sobre uma cadeira de rodas – dizia que o artista não pode dar mais de 70%. O resto quem completa é cada um.


Ela, também experimentada nos palcos, complementa: “A arte não se explica, mas faz sentir e propõe questões para que você tire suas conclusões. E isso ficou claro quando comecei a assumir minha dor. Quanto mais pessoal se é, mais universal se torna. O pesar do ser humano é único, assim como a solidão e as grandes sensações. Eu só pude entender a solidão da Clarice quando chequei a minha solidão, minha angústia criativa, meu estado de graça e a personagem terminou um híbrido de Beth e Clarice.”
Essa e outras análises são fruto do único auxílio que Beth Goulart teve durante a concepção do espetáculo – todo o restante ela assumiu sozinha, do roteiro até a direção. O ator e diretor de teatro Amir Haddad funcionou como supervisor, lançando um olhar em cima do da atriz e propondo questões para ressaltar a consciência de Beth sobre o que estava sendo criado.
Haddad a convenceu de que aquela realização não era um depoimento simplesmente de Clarice, já que Beth se revelava tanto quanto a escritora. Para uma falar da dor e da solidão da outra, precisava colocar a sua própria, tornar o espetáculo um ser vivo, mais humano. A essa observação e diferentes de pessoas que privaram da intimidade de Clarice Lispector e apresentaram mais vestígios, hoje se deve a existência, em cena, de uma pessoa “independente e que comanda”. É através dela que Beth consegue improvisar de Clarice no palco, se preciso for, e até durante a entrevista.  
“Isso é possível pela intimidade que eu tenho com a obra de Clarice, mas, antes de chegar a essa persona, pisei no terreno do desconhecido e passei por momentos muito angustiantes. Nesse longo processo de concepção, tive de abrir mão do meu arsenal de conhecimentos para sair da zona de conforto e criar algo novo. Tive de esquecer o resultado para mergulhar de cabeça no perigo, precisei sentir o desequilíbrio e o risco de cair. Isso é muito desagradável e todo o processo de construção foi uma aflição. Mas foi necessário também viver. A gente só voa se aceita o risco de cair. É a fé no salto que me faz chegar ao outro lado”, revela.
Toda ansiedade foi legítima. Beth Goulart teve de sobrepor diversos obstáculos até chegar o momento da consagração nos palcos e receber os principais prêmios no Brasil, incluindo o Shell. O primeiro e mais alto foi a não aprovação da família do escritor Fernando Sabino. Inicialmente Beth quis colocar em cena a troca de correspondências entre Sabino e Lispector, publicada em “Cartas perto do coração.” “Eu queria mostrar o ser humano por trás do autor, mostrar detalhes da vida desses criadores (...) Fiquei numa situação complicada, mas não tinha como retroceder. Já estava envolvida pela Clarice”, diz.
Paulo Gurgel Valente, filho de Clarice Lispector, foi um dos primeiros a assistir a um ensaio, ainda na fase inicial. Não havia cenário e tampouco figurino. “Claro que eu também fiquei nervosíssima.  Ele viu muito no início, mas eu precisava saber se estava tudo em ordem para, se fosse o caso, ter tempo de modificar. Ele ficou super emocionado, tanto que não conseguiu falar muito ao final. Depois me escreveu um e-mail com coisas incríveis. Disse que tem certas frases que são muito fortes e eu tinha de dar um tempo entre uma e outra pra que elas tivessem eco. Filho tem suas sensibilidade. Eu vi que ele tinha toda razão e comecei a trabalhar melhor o silêncio.”


“Tive de esquecer o resultado para mergulhar de cabeça no perigo, precisei sentir o desequilíbrio e o risco de cair. Mas foi necessário também viver. A gente só voa se aceita o risco de cair. É a fé no salto que me faz chegar ao outro lado”

Intimidade entre mulheres

É o terceiro espetáculo de Beth Goulart como criadora, uma cobaia de si mesma. “A linguagem surgiu muito do meu fazer teatral. É como a palavra da Clarice que é só dela. E eu tive a sorte de tê-la junto comigo. Ela me ampara, me sustenta, me dá lastro. O espetáculo é uma declaração de amor.”
A atriz tinha 13 anos quando leu o livro inaugural de Clarice, “Perto do coração selvagem”, pela primeira vez. No livro, Joana, a protagonista, também é uma jovem e houve identificação imediata. Demorou muito para o espetáculo nascer. Muito até que chegasse o entendimento para transformar a solitária experiência da literatura na arte coletiva do teatro, de juntar muitos num só momento de epifania. Levou realmente tempo. Na verdade, uma vida inteira.
“Clarice me acompanhou durante toda a minha vida. Li muitas de suas obras e minha admiração só aumentou. Virei mulher e percebi que as palavra dela tem uma importância em cada fase. Aliás, a cada nova leitura se apreende algo.”
Fazer uma personagem real é mais desafiador, mas Beth vive Clarice e outras quatro. Foi por isso que no processo de visagismo abriu mão de uma maquiagem que a deixava ainda mais parecida com a escritora. E ao invés de aproximar outras características, o melhor foi ter distanciamento físico. As sobrancelhas, ambas finas, mas uma reta e outra arqueada, foram neutralizadas.
“Eu não podia ser uma caricatura, nem a força estava na maquiagem. Existe todo um trabalho de gestos, de maneira de falar, do ritmo da voz, ritmo de andar em que a presença da Clarice fica muito forte. Cada personagem se expressa de uma forma. As idades são diferentes e as mudanças ficam claras para o público. Faz parte da linguagem do espetáculo essas transformações. Tanto que todas elas são feitas diante da platéia. O espaço cênico é muito aberto. Pedi ao cenógrafo que fizesse um vazio branco, queria dar a ideia de que aquele espaço poderia ser preenchido pelas palavras e pelos gestos, pela luz, como se fosse uma tela em branco a ser pintada ou uma folha a ser escrita. Essa neutralidade tem relação com uma essencialidade de linguagem teatral que eu busco nos meus trabalhos e que existe nas palavras de Clarice. O espetáculo é muito sensorial e eu proponho que as pessoas sintam a Clarice mais que analisem ela.”


A despeito da escapatória planejada para respeitar o que é particular de uma figura pública, há vários momentos que mostram as intimidades de Clarice Lispector. Num divã colocado no palco ela passa por uma das sessões de anos de psicanálise. E é quando reverberam muitas palavras e outros inúmeros vazios da mulher lúcida em excesso e de temperamento reconhecidamente impulsivo.
Depois de uma momento de epifania - ou “instante já” no modo clariciano de dizer -  no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, o espetáculo cresce. É a partir da abertura de olhares de uma dona de casa até então limitada a cuidar do marido e dos filhos que as personagens enxergam novas possibilidades. Elas invariavelmente tem opiniões fortes, mas a partir do surgimento de um objeto desconcertante, começam a pesar diferente, se perdem e terminam por encontrar novas formas de entendimento do mundo. Do seu infinito particular e do que há ao redor.
Beth, que se interessa por outras mulheres e já começou a estudar pioneiras em diversas áreas como Dulcina Moraes e Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, mãe do samba, se questiona em uma das cenas, num tom aberto: “O que seria do meu corpo sem o aviso da fome? Que seria de mim sem Deus!”
É assim que, sem titubear, diz sobre o que foi o maior aprendizado dessa trajetória: ter mais humanidade.

Fotos: Ramón Vasconcelos
*Matéria publicada na revista LivingFor.