sábado, 23 de agosto de 2008

O que me toca

Gosto de muitas coisas no meu ofício. Mas quiçá a melhor delas seja a oportunidade de conhecer e conversar com pessoas diferentes e contar suas histórias. Em época de eleições, com políticos e pseudo-propostas em cena, minha equipe tem preferido conhecer o outro lado, o do eleitor.
Laila estava no Instituto de Reabilitação de Cegos do Rio Grande do Norte. É professora da quarta série de uma sala com quatro alunos de idades variadas. Ela tinha passado uma atividade e estava quieta no birô quando entrei falando um pouco mais alto que de costume, como se não soubesse que eles pela ausência de um sentido têm a audição mais sensível.
Depois de uma apresentação rápida comecei a perguntar, e a receptividade era evidente. Aos 29 anos ela pareceu uma jovem muito serena. Branca, estatura mediana, articulada com as palavras, de gestos contidos, cabelo curto partido pro lado esquerdo que cobria parcialmente um buraco na cabeça. Marca da cirurgia para retirada de um tumor no cérebro há quatro anos. Foi depois desse procedimento que veio a seqüela e ao redor tudo ficou escuro.
Hoje ela consegue ver alguns vultos, dependendo da luminosidade do ambiente. E tem outro diferencial: sabe ler em braile, o que não acontecia quando das últimas eleições municipais. Naquele ano a mãe ajudou conduzindo até a seção e indicando onde estavam os números. E ela votou.
A participação no pleito era o objetivo da minha reportagem, que foi motivada pelo Tribunal Regional Eleitoral que baixou a resolução 15/2008, disponibilizando uma linha telefônica na Corregedoria de Justiça, a fim de facilitar a solicitação de pessoas com dificuldades de locomoção e idosos para mudar do local de votação. É um adendo a lei eleitoral, que já previa essa transferência, mas que antes só podia ser feita via cartório.
Laila já passou por um período de adaptação, duro mesmo pra quem tem bom astral. Agora sabe se virar sozinha. Usa de quando em vez uma bengala quando não conhece o espaço onde está. E assim não deixa de participar de nada. Eu gosto de gente. E tê-la conhecido foi uma beleza.
Mas naquela mesma tarde também bati um papo com o presidente da instituição, cego de nascença. Ele começou a falar e no meio do pensamento truncado de tantos comparativos soltou uma palavra que me causou estranheza: videntes.
Ele se referia as pessoas que possuem o sentido da visão. Eu desliguei daquela entrevista imediatamente e pensei que não me sinto assim. Vidente no meu pequeno enteder é uma pessoa que consegue ter premunições.
Depois perguntei alguma coisa sem sentido, gaguejando em dois momentos, na tentativa de disfarçar o tempo em que divaguei. Mas saí de lá convencido de que a gente vê pouco, com ou sem deficiência. O vidente nada mais é que um termo usado por mim e por ele pra se referir a alguém que enxerga mais que nós. A idéia é a mesma.
Furos em um papel só dizem que ele não serve pra escrever. Mas pra Laila e tantas outras pessoas aquilo é instrumento de comunicação tal como minha caneta, o meu computador. Da mesma maneira que os cegos gostariam de enxergar com os olhos, eu, que assumidamente também gosto de tato, queria ver com os dedos. E tocar da pele ao pensamento.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Hora do cabriolar das minhocas

Quando o tempo fecha time que ta perdendo no campeonato não pode parar, quer recuperação. O técnico se veste com uma capa de chuva e põe o elenco em campo, com o gramado pesado, para mais um coletivo.
Quando o tempo fecha é que os pássaros gastam mais tempo em seus ninhos, entrelaçados com criterioso zelo. As águas encharcam as penas e fazem do voar uma tarefa difícil. Sair até para conseguir o alimento é risco de vida.
Quando o tempo fecha em agosto a chuva é de vento e o mar fica revolto. O sonho oceânico se turva na imensidão. Os surfistas aproveitam as ondas crescidas. A paisagem litorânea se faz gris e o colorido é salvo por arco-íris que surgem de algum lugar longínquo.
Quando o tempo fecha as vídeolocadoras ficam cheias e a farta matéria prima das pipocas some das prateleiras dos supermercados. É resultado da simples associação. Noite fria pede filme antigo mais deleite de plumas brancas com gosto de manteiga.
Tempo chuvoso também incita atrito. E os corpos se procuram, se relam, ajudam. O aquecer é uma ação involuntária do animal instinto de sobrevivência. O homem-bicho também se programa. No inverno a caça tem de estar por perto, pra não precisar ir à rua.
Quando o tempo fecha a natureza desafia os carros. Nas estradas abertas na mata, poças de lama. Nas ruas pavimentadas, buracos. E os motoristas buzinam num reclamar perturbador pra quem está farto de ouvir moléstias alheias.
Quando o tempo fecha os guarda-chuvas se abrem. As dispensas se enchem, os computadores esquentam mais que o de costume, o cio das gatas atraem menos pretendentes, dá preguiça de sair pra pagar contas e vontade de pintar.
Tempo molhado também atrasa as construções sólidas. Água fura qualquer aspereza. E quem precisa reconstruir usa do improviso. Precisa aprender a cavar feito ser hermafrodita. De nada valem as inchadas se no arar e no plantar falta minhoca.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Conflito

Pela manhã me perguntaram sobre com o que eu tinha sonhado. O questionamento não veio de um companheiro de trabalho que costuma indagar a mesma coisa pra em seguida jogar no bicho. Despertei sem saber o que meu inconsciente confabulou durante o sono, mas hoje meu maior desejo é não ter dúvidas.
Das certezas, só que isso não é possível em tempo algum. Ainda assim, persigo o ócio, a segurança, a rotina, o verbo acreditar. Minha fé é como um café em pó. Precisa de de-leite pra não amargar a boca. E tem outra coisa: eu farso o que quiser.

Aliviando tensões (massagem é coisa de frutinha!)

Instrumento indispensável da vida moderna é o controle remoto. Em noites de impaciência e insônia o meu vem sendo usado mais que de costume. E foi numa dessa que comecei a trocar de canal até parar no Programa do Jô, no instante em que iria começar uma entrevista com a jornalista Fernanda Colavitti.
Apostei. Ela me pareceu ter um semblante bem comum, além de compartilharmos da mesma profissão e termos um blog. Era falar sobre o dela o motivo da entrevista. Sexo é o tema central da página. E até aí tudo muito convencional, já que é cada vez mais fácil encontrar o tal conteúdo para adultos nesse mundo virtual. Além do mais, as melhores entrevistas dele são com pessoas até então anônimas.
Mas logo no início do papo a gaja se mostrou atrativa. Ria de lado para parecer tímida, mesmo sendo notório que estava muito desencanada com todas as perguntas que penetravam, além de tudo, na sua intimidade. Sensacional é falar sobre isso sem nenhuma inibição. Melhor ainda é não ter a preocupação de dissociar a vida profissional da pessoal.
O blog da Fernanda é coorporativo. Está na página da revista Galileu, da Editora Globo. É isso mesmo. Ela tem o aval do chefe para pesquisar e falar sobre qualquer putaria e pleno horário de expediente, o que nós só fazemos na hora do cafezinho e em tom quase inaudível por receio de retaliação.
Falando em trabalho um dos trechos mais curiosos daquele papo foi o que motivou esse post. Desde março deste ano ela vem escrevendo e colecionando contatos. Um desses informantes passou o link da página de um grupo argentino denominado Los Fiesteros que surgiu nos anos 1990 com a proposta de trocar o chope do happy hour por sexo.
No início, eram seis pessoas que se conheceram num site de relacionamentos e marcaram outros prazeres pra depois das seis em um escritório no bairro de Villa Crespo. Os encontros aconteciam uma vez por mês sempre na última semana e mudavam de lugar, afinal explorar também novos ambientes sempre é bacana.
A cada edição eram convidados novos participantes, como nós fazemos naturalmente por aqui, chamando um amigo, um primo – qualquer pessoa menos o patrão – para uma mesa de bar. E logo aconteceu a primeira grande festa num chalé de dois andares com a presença de 110 pessoas.
Hoje tem tanta gente literalmente querendo entrar, que foi organizada uma página na internet para cadastrar todo mundo e informar através de newsletters onde acontecem as grandes surubas a cada 15 dias. Também foram estabelecidas divisões. Existem agora grupos mistos (com homens e mulheres) e grupos gays para homens acima de 18 anos, sem limite de idade e na faixa etária de 18 a 35 anos.
Durante aquela madrugada deitado no sofá ao meu lado só estava o celular. E foi nessa hora que eu descobri a importância da função escritório dele. Anotei os endereços dos sítios e entrei dias depois pra conferir.
Sobre impressões, aqui meus registros. Em tempos de tantas preocupações com doenças sexualmente transmissíveis vale lembrar que é bom ter prudência. Ela é prima-irmã da saúde. E não me venha com essa de que se pagando o equivalente a oito reais se tem direito a camisinha a noite inteira, além de armário pra roupas e uma bebida. Não deve ser fácil controlar um batalhão de gente de uma só vez. Ainda mais sentindo picos de tesão.
Sobre curiosidades, também digo. Há uma recomendação expressa para que ninguém seja deixado de lado e assim, como uma democracia, todos possam desfrutar. E o mais interessante é ler as regras. A sexta delas proíbe o uso dos banheiros para fins sexuais, justificando que no meio da galera sempre tem gente que precisa usar as dependências pra valer. Não vi qualquer tópico dispondo sobre o que fazer com outros fetiches. Logo, concluo que pode ser interessante pra os mais exibicionistas.
Nessas orgias acho que deve rolar um esquema mais pancadão, com direito a tapas e tudo mais. Imagine o que é encontrar um bando de gente estressada, que acabou de sair do trampo com todas as pressões de ter de bater metas!
Nunca ouvi dizer que exista algo parecido por aqui, mas Los Fiesteros informam que a prática já foi espalhada para outros países, inclusive o Brasil. Na minha cidade, movimentos de outras culturas, até mais amenas e limpinhas tem sido vistos com um tanto de estranheza. Um deles foi proposto por um empresário da hotelaria local, Eduardo Bagnoli. Ele sugere que seja criado um local para prática do naturismo, numa praia ao lado de Ponta Negra, onde só é possível chegar com a ajuda de embarcações de pesca artesanal.
Hilário seria ver os pescadores transportando peladões pra lá e pra cá. Diz que isso poderia atrair mais turista. Na página do outro grupo na web se incita o turismo sexual, e por essas bandas há outdoors combatendo a prática da gringalhada. Difícil é saber quem está na mão certa, dos novos tempos. Mercado pra tudo já ficou claro que existe.

P.S. 1: Para quem achar curioso ou excitante, fica o endereço. http://www.grupolosfiesteros.com/
P.S. 2: Aviso aos navegantes que não existe nenhum motivo especial para esse texto ter sido escrito em plena sexta-feira.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

A minha área verde (ou sobre a felicidade)

Para minha mãe
É um prédio todo azul. Com tons claros e mais escuros. Todo azul. Eu passo diariamente e fico olhando. Não é pela imponência da arquitetura, nem pela parede de vidro que deve revelar uma bela paisagem – já que é um dos pontos mais altos da cidade. Ao lado da principal sacada há um jardim. E cada andar guarda uma surpresa paisagística. Plantas exóticas, todas altas. Eu, debaixo, consigo ver.
Era criança quando minha mãe falou pela primeira vez que eu tinha uma séria atração pelo inacessível. Mais tarde eu morava na Espanha e ela me mandou um cd que na faixa 14 tinha uma música que ficaria bem melhor na sua voz. “Mesmo quando ele consegue o que ele quis, quando tem já não quer. Acha alguma coisa nova na TV, o que não pode ter, e deixa de gostar, larga mão do que ele já tem. Passa então a amar tudo aquilo que não ganhou”.
Naquela época, longe dos olhos dela, eu não tinha muita coisa palpável. Só um som portátil, duas malas com roupas, uma máquina fotográfica, um computador, um celular pré-pago, mais umas tranqueiras e um quitinete alugado. E tudo isso tinha muito valor. No meu quarto, por exemplo, as paredes eram cheias de fotografias dos mais chegados e bilhetes dos poucos que fui conhecendo nas aulas, nas ruas, nos cafés. Os bens físicos protegiam meus tesouros emocionais.
Escrevendo por ofício ou prazer, sinto nostalgia. Parece uma compulsão, como se fosse proteger a vida de alguém. A minha talvez. E naqueles tempos eu exercitava a palavra em dois idiomas. E ganhava responsabilidade, senso prático e um pouco dinheiro nuns trabalhos temporários. Só não consegui ter apego as coisas materiais. Saí de lá deixando as peças de frio e os discos de mpb.
Em momentos é preciso escolher. Normalmente minha inclinação é tomar decisões quando a saudade açoita. Eu me sentia uma pedra remota, um corpo fugitivo. No último sopro de estrelas ganhei uma festa de despedidas, numa boate que eu gostava, mas não freqüentava muito.
Por aqui, passei uns dias na casa da minha família. Há jardins, umas plantas bonitas, de idade avançada e que seguiam crescendo. Estranho era ver que uma ala nova de quartos ocupava o nascedouro de um xique-xique que atingiu mais de dez metros de altura e anunciava as chuvas. Era o orgulho do meu pai.
Quando tinham passado três meses dali fui para meu primeiro apartamento. Sem varanda. Comprei uma ráfia para a sala e uns mini cactos para o banheiro. Não tinham espinhos. O cachepô não combinava muito com a decoração rústica. Era de vidro, grande como um aquário de sala de espera de dentista. A diarista colocava água duas vezes por semana e eu batia papo. Fiz tudo certo, mas ela não. E a planta morreu por excesso de cuidado, com o caule todo úmido, quase podre.
Teve também uma vez que levei pra lá dois vasos e larguei na janela pra pegar uma brisa. Os ventos de agosto derrubaram um que atravessou a janela do quinto andar e quase cai sobre a mala do carro novo do vizinho.
O cinza das ruas não me parece ter um ar muito simpático. Até finda o ar quando estou ao redor de muito concreto. Das reminiscências da minha infância eu trago o apego pelo verde. E quero ter vida em todos os cantos pra minimizar a dor dos azulejos, dos objetos marcados por farsas.
Para um apartamento novo, um novo projeto, foram adquiridas muitas plantas. No corredor, ao lado da mesa de jantar, da televisão, nos banheiros todos. Em tudo quanto é lugar tem. Na entrada, uma árvore da felicidade. Claro que é prudente regar, mas dizem que ela cresce por influência das energias boas. A minha passou um tempo bem bonita até que começou a definhar. Agora, apanho umas folhas secas do chão quase que diariamente. Por isso hoje resolvi tirar da entrada. No corredor não consigo controlar quem chega ou sai.
Deve ser um olhar de admiração que lanço pelas manhãs quando passo por aquele prédio e o mundo só parece ter sentido na vertical.

Cheque em branco

O braço direito fazia um laço pela cintura e a mão esquerda levantada, deitava estrategicamente sobre sua nuca. Era o gesto mais simples e abissal. Era com ele que via sua entrega. Num langor que provocava fascínio e sensação de poder.
O corpo mole respondia com sinais sonoros e toques leves. Tudo com a rapidez da debilitude. E ele abria os olhos na tentativa de flagrar o semblante de um grunhido. Parecia entender aquele desejo, e, por isso, ele se tornou mais um a ficar na expectativa de uma revelação.
Do alto de um penhasco todos os olhos abriram repentinos com a chegada de outro casal. Vinha também admirar a lua, que àquela altura já tinha sido oferecida como regalo. Mais acima havia desenhos que lembravam os cadernos antigos, cheios de pontos que precisavam ser unidos. Eles piscavam. Do acender a apagar, surgiam em novos lugares revelando diversas formas. Era uma noite sem nuvens.
Na cama, um lençol florido. No criado mudo, uma máscara. De olhos vendados sentiu o peso do seu quadril que mexia para frente e voltava e uma vontade de tirar as roupas de baixo. Com as pontas dos dedos ligeiros tocava o arrepio de suas coxas. Eles, longos e traiçoeiros, correram por elas, deram voltas e subiram até as costas.
O combinado era apenas sentir, mas ele foi quebrado. Tirou aquele corpo que ondulava de cima e o jogou para o lado, parando quando ficou de bruços. Arrancou a venda dos olhos e parou para admirar por alguns momentos até que se deitou sobre ele. Os pêlos ficaram ainda mais de pé.
A rua parecia estar ladeada por quaresmeiras. Coloridas e ao mesmo tempo tristes. Tudo era ambíguo como o seu olhar. Havia beleza ali, e também os artifícios duvidosos da conquista. Havia querer e insegurança. Tinham uma cumplicidade razoável, mas os diálogos nunca evoluíram. Não se chegou a falar claramente sobre um futuro bom e a participação de ambos nele.
Nas conversas o que mais incomodava era o targiversar. Mas entendia que o outro não fazia promessas que não pudessem ser cumpridas. E por mais que o presente fosse tentador, a incerteza do que estava por vir lhe fez deixar de assinar qualquer coisa que um dia servisse de cobrança.