terça-feira, 16 de junho de 2009

Hoje eu vou-me embora



Como essa é uma carta de despedidas, vou saborear até sorver todo o ar do quarto e asfixiar os poucos desejos que ainda guardo. Começo falando de mim, do princípio. De quando eu entrei aqui sem arrastar correntes. Sem carregar o fardo da trouxa das desilusões. Vinha apenas com uma camisa puída na gola e com dois furos no peito. De um passado bem resolvido.

Não peço atenção ao falar. Sei que você para pra me ouvir. Aproveitar de uma voz mais experiente, mais calejada de histórias que só deram certo por algum tempo. Pois sabendo desse teu desprendimento, dedico uma última música. Opened once, do Jeff Buckley.

No ambiente em que estou há meia luz. Não é a mesma das noites de lua e mais quase nada. Mas é mais segura. Sinto-me confortável na minha casa, vendo as paredes com pouca cor, o banheiro com duas coisas de cada e o baú onde está guardado um edredom de tafetá para os dias de romance e chuva.

Se eu digo que me sinto bem, não se apresse como de costume, e vá achando que eu me esqueci de tudo. É que estou feliz com minha decisão de fazer isso, custe o tempo e as mazelas que causar. Faço confiante porque já me conheço e sei que minha memória seletiva só arquiva o que é preciso, pra não me encher a cabeça de idiossincrasias.

Das lembranças, inclusive, não tenho a de ter sido por sequer um dia grosseiro com alguém que já mereceu minha estima. Sem medos, digo que te tratei com muito zelo, inclusive mais do que deveria. Com carinho até. Poderia recordar do meu polegar brincando na comissura dos teus lábios. Mas se hoje me arrependo desses excessos é pelo arbitrário jogo provocado para medir forças que debelaras enquanto eu continuei a te querer com disciplinados exercícios de oratória.

Sei que, contudo, você ainda jogará a responsabilidade do fim sobre minhas costas, com todo o peso que minha escoliose não suporta. O que não sei é se merecerei mais uma vez sua lágrimas, mas eu, fatalista que sou, prefiro acreditar no acaso. Não quero te punir com o poder de rusgas quase conjugais. Prefiro que se lembre de mim com a mesma doçura que havia na sua meia-voz quando pedia pra que eu te pegasse por trás com mais força.

Acho que já usei esse texto em outra ocasião, mas aquilo que eu fazia era cena. Fui sincero apenas em alguns momentos, mais delicados, como quando introduzia meu dedo indicador bem de mansinho pela beirada de sua peça íntima, tocando os glúteos. Quando eu te beijava também era muito verdadeiro. E nos momentos em que me deixava ser içado como se me submeter a todos os perigos fosse uma espécie de redenção.

Dos nossos cafés agora só resta o pó. Umedecido. Entorpecido. Parece que te vejo me fitando de olhos esbugalhados enquanto eu falo as maiores infâmias só pra impressionar. E você, jovem demais, sem conseguir dizer nada com os hiatos da gagueira. Mesmo tento aproveitado muito bem, sua juventude me cansou em alguns momentos.

Há muito tempo deixei de acreditar que a gente dá e não espera nada em troca. Você me deu muito, é verdade. Encheu-me de coisas das quais nunca precisei. Não queria conhecer teus pais, nem ir ao casamento do teu irmão, nem tampouco ter de viajar não sei quantos quilômetros pra isso. Não era assim que eu iria acreditar que o que você falava do alto dos seus 21 anos era verdade. Precisava de outras garantias. Eu sempre acreditei no nosso sexo e nos nossos sorrisos sincronizados. Mas era isso contra o todo o resto. E no fim eu percebi que a equação era desigual.

Você ainda vai encontrar tantas outras assim. E, mesmo sem que me peças, digo: não te desesperes. Os conflitos mais interessantes são como os dos Madrigais Privados de Eugenio Montale. Ele teve seu nome posto pelo ser amado em uma árvore e em retribuição batizou um incêndio na floresta com o nome dele.

Volto a dizer que essa é uma carta de despedidas e, portanto respondo as últimas perguntas que me fez para aniquilar, desde já, qualquer motivo para outra conversa. Farei sem me apegar aos teus compromissos familiares, claro.

Recebi sim tua mensagem, perguntando se eu queria ficar com você pra valer. Recebi também a que revelava que por causa da ausência de resposta você estava desistindo, concordando comigo, dizendo que eu venci. E a que mais tarde, durante a madrugada, pretendia me acordar, quem sabe pra tentar remediar o que foi dito num impulso juvenil.

Li tudo. Tudo depois de eu ter dado um basta nessa situação e lhe comunicado de tal gesto. Consegui isso graças a teus reflexos, tuas ironias, teus descasos. Obrigado pelos momentos bons, por me ajudar a esquecê-los e adeus.

Ilustração: Aureliano Medeiros
*Texto feito ondas quebrando em rochas, num ir e vir com mais força. Tirei daqui tempos atrás e agora publico novamente por me parecer a lua descabida. E as palavras leves demais. Publicado na revista LivingFor.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Uma negativa

Muita coisa mudou. Os olhos são de um cinza quase branco. O que havia de pigmentação negra também saiu de outras partes do corpo. Estão com o mesmo acinzentado. Dentes amarelados e espaços cada vez mais amplos entre eles. De quando em vez devora as refeições. Noutras nem trisca. São os anos que escoram irregularidades.

Nem bem se sustentava quando o compramos. Eu era bastante jovem e tinha a mesma falta de criatividade de hoje. Gostava de nomes simples, mas terminei por aceitar a sugestão do meu irmão caçula. Ele assistia e sonhava com personagens de seriados. Jaspion, Jiraya, Power Rangers. Foi de um deles que saiu Jephy, que nem sabíamos a forma graficamente correta, mas assim parecia ser - como deveria - mais internacional.

Fui eu quem aguentou as noites de quase miados e se manteve vigilante, afastando os gatos matreiros circulantes do quarteirão. Desde Xuxa que o quintal estava espaçoso e crescia grama. De início a gente nem parou pra pensar que poodle é diferente de pastor alemão. Só percebemos dois meses depois, quando aconteceu da primeira noite do outro lado da porta. Ninguém conseguiu dormir. Os latidos já tinham mais força.

Aprendemos a dirigir cedo. Eu e minha irmã, com cerca de dez anos cada. Na praia, com limites longínquos. Havia de ser fácil essa leveza de não enxergar canteiro qualquer. A cidade não demorou a chamar e foi da vez que a gente começou a julgar que em casa quem mandava era nossa mãe. Vão perguntar a ela se pode, era o máximo que meu pai dizia.

Jephy chegou por último, começou a interagir com o espaço e as pessoas de uma maneira estranha e terminou por achar justamente o contrário. Colou nele, que sempre foi quem manteve toda a estrutura funcionando. Era o único que trabalhava e nos dava abrigo e comida. Dezesseis anos depois e os dois vivem juntos. Dormem, tomam café, almoçam, jantam, vão à praia e alguns eventos sociais. São fiéis a tal ponto que a velhice do outro parece preocupar ambos.

Haver vivenciado três pares de separações é que me fez preferir plantas. Elas soam num evocar de rede de balanço dependendo da intensidade do vento. Caso não deseje o bocejo, é só fechar as janelas. Abafar.

Em apartamentos conta ponto a praticidade. É fácil cuidar de plantas, especialmente quando são compradas em um viveiro, como todas as recomendações de como proceder, e para afastar qualquer dúvida, mantém-se placas como tudo detalhado. Quantidades em mililitros versus dias da semana.

No aniversário do ano passado foi que entrou uma que não tinha sido selecionada. Regalo de uma amiga. Veio num vaso vermelho do tamanho de uma laranja. Média, ainda mais. Pensei que fosse morrer. E foi sem esperanças que transplantei para uma acomodação maior. Como em outras, água duas vezes por semana.

Nosso convívio era morno até que a pus no hall de entrada. Lá de fora, parece vociferar. Água não quer mais beber. Em vão insisto agora só aos sábados. É o tempo de virar pra cuidar da vizinha e logo o chão está todo molhado. Começo a achar que pode lhe estar inundando uma carência de conversa. É um diagnóstico ouvido na televisão tempos atrás. O mesmo aparelho que fica quase sempre desligado, contribuindo com as ausências do recinto, como se recomenda fazer nos hospitais.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Separação de estréia

Meus pais têm uma diferença de onze anos. Estão juntos há três décadas. Tempo desses numa novela tinha um casal sendo alvo. As idades ainda mais distantes. As pessoas falavam. Das telas logo passou para o jornal e, por osmose, para as ruas. Virou a polêmica. Pra mim, algo demasiadamente natural.

Durante três dias passava pela porta de escola sem entrar. Só de uma que tive de ir até a portaria e voltar. Do outro lado da rua era que meu pai parava o carro. Não tinha sentido dar a volta e depois precisar contornar pra pegar o rumo do escritório. Naquela manhã o semáforo não abriu logo que atravessei as duas vias. Foi obrigado a usar a tática do fingir.

Minha irmã chegava junto, mas era mais fácil de despistar. Bastava parar num carrinho de balas que ocupava parte do asfalto e atrapalhava a entrada de veículos e comprar dez xibius. Cada uma custava dez centavos, valendo toda a aquisição, portanto, um real.

A cena era necessária porque cumpria suspensão. Penalidade aplicada a um desordeiro que não teve a oportunidade de explicar que a manga que levava na mão na hora do intervalo não tinha sido derrubada do pé, senão apanhada do chão. Com Padre Prata valia o ditado “contra fato não existe argumento”. Fui visto carregando a fruta. Ponto. Tinha feito sem autorização. Ponto.

Devia ser o escape dele, que não podia ocupar suas lacunas de outra forma. A culpa era dos votos, mas ele punha em quem queria. As mangueiras despertavam um tipo de ciúme especial. Eram quatro. Frondosas e de sombras largas. Bancos faziam ciranda e viviam cheios de adolescentes e meninos ainda mais jovens, sem poder namorar.

No ensino religioso a pragmática é essa. Dois sexos não se encontram nas classes de educação física nem a qualquer outra hora em lugar algum. Por isso que bem cedo se aprende a ser clandestino. Lembro de uma garota que ficou falada pelos corredores porque transou com o namorado na escada de um hotel fora da cidade, onde acontecia uma competição desportiva. E de outra que engravidou e foi expulsa.

Eu tinha menos de quinze. Achava umas meninas interessantes. Namorei três no intervalo de meia dúzia de anos. Essa não era a média. Alguns companheiros de sala nem tiveram a chance. Dedilhavam em pensamento. Durante a maior parte do tempo ficávamos contemplativos. Aquilo não era desejo sexual nem sequer por descoberta. As regras num lugar como aquele serviam para ser quebradas. E ficar, além de um desafio, era um termo novo.

De maneira renitente questionava o que se passava com elas. Não demonstravam qualquer inquietação com a montanha de imposições. Falando em regras, quase todas já tinham passado pela primeira vez. Algumas lá mesmo. A gente sabia quando acontecia no banheiro da escola. A amiga mais velha era acionada e levava o absorvente. Praxe. E a informação sempre vazava.

A natureza feminina faz apontar seios mais cedo. O estirão dos garotos acontece cerca de dois anos depois. Comprovado cientificamente. E esse espaço gera um abismo quando se é jovem. O melhor era espiar as meninas fartas, de 17, que achavam graça. Só agora, perto dos 30, percebo com quem gostam de deitar e que, de fato, são muito mais discretas.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Três dias depois

Foi pra me encabular. Numa sexta-feira disse que era a vez que aceitaria com honras meu pedido de afastamento. Ainda que não entendera qual o novo ou mesmo motivo. E levasse até a segunda para se reprogramar.

Choro baixinho. Três rapazes tocavam a uma distância de três mesas, seis pessoas e doze ouvidos atentos àquela conversa. Alvoroço dentro do estômago. Quase como se fizesse a empada de camarão voltar pelo gargalo.

Dois travestis passavam pela rua chamando menos atenção. Sacudidelas nervosas de cabeça. Nós éramos o centro. Entornava a quarta cerveja quando lhe vi terminar o primeiro e derradeiro café.

Em caso de um desastre seria encontrada na minha caixa-preta uma informação que nunca reneguei. Momentos assim pedem que nas veias corra algo mais espalhado. Traga mais um trago, disse. Nem sempre a ficha precisa cair em um local público. O luto vivo dentro de casa, onde ninguém me alcance.

Vi. Digressões sem nenhum ar de espontaneidade. Era bom de fugir. Assunto recorrente e vão. Em pouco tempo as palavras perderiam força, tiraria o telefone, num impulso faria a proposta e acordaria enrolado em nada, roçando e mordendo tuas costas.

Nossa dinâmica foi gasta por incertezas, conversas que levavam no máximo a uma semana de desejos separados. Vocabulário gasto. Paciência gasta. Amor que desgasta o corpo e deixa meus pensamentos colados num travesseiro morno até o meio-dia seguinte.

Peleja assim é a tal palavra que rima com dor, acreditam os poetas. E como a dor, termina. Só que o tempo é impreciso. Deixa ao longe a informação do preço que se paga no final, momento mais sofrível.

Tenho pelo menos o direito de numa próxima pedir antes um orçamento?

Não?

Feche a conta, por favor!

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Um amor para Cidinha

Distrito de Curralinho, município de São José do Egito, interior de Pernambuco, Nordeste do Brasil. Terra de muitos conflitos. A começar por uma ciumeira causada pela predileção pelo santo de nome comum por aquelas bandas. A capelinha em homenagem foi erguida e destruída umas tantas vezes até que os fazendeiros de lá de perto terminaram por desistir de São Pedro. Aleluia!

O espaço do padroeiro fica à beira do Rio Pajeú. Aquele mesmo que vai despejar no São Francisco, que vai bater no meio do mar, laiá. Com água boa, como toda que descansa no semi-árido, ali dá vontade de entardecer.

Da fazenda até as costas da capela Cidinha andava mais de meia légua. Saia depois do almoço e chegava na hora que o sol quase se punha. Foi num dia qualquer que deu de cara o com aprendiz de peão da maior propriedade de Riacho do Meio, Oswaldo.

O moleque tinha 14 e pico comprovados na certidão e mais em nenhum documento. Talvez tirasse se um dia quisesse votar. Ela tinha dois anos mais e uma aparência cansada. De fazer o mesmo trajeto para ver o avermelhado do céu daquele ângulo, de ser sozinha.

Era a primeira chance dele. Ainda vivia a fase de descoberta, de aprender a controlar o corpo, de sentir. Precisava desviar o olhar pra não ser tão apressado. Ninguém visitava aquele lugar que instantes depois ficaria sem luz, com insetos.

Foi aproveitando um momento de distração que meteu pela primeira vez. Sem reclamações, não demorou a gozar. Isso se repetiu por meses até que repentinamente Cidinha desapareceu. Circulou na redondeza que a fazenda de Zé Alcides tinha perdido sua melhor vaca leiteira.

O incompreendido

Manhã de domingo. Quase madrugada. O ponteiro menor acaba de alcançar o seis. Estou na cama, do lado direito que é o meu. Dormi outra vez, penso imediatamente. Devia ter saído pra uma balada dessas para garotos perdidos. Agora é tarde. Ou, cedo demais. Que foda! Poderia ficar inerte até que o resto da cidade acorde. Do lado de fora há sol. Paisagem muito diferente da dos últimos dias. Posso aproveitar e caminhar na praia. Mas só encontraria a turma da terceira idade e bêbados. Rolo até a ponta esquerda. Está fria e isso me agrada. Meu peito pela primeira vez sentia um frescor decente. Jogo a perna por cima de um travesseiro solto. Um, dois, três movimentos e me sinto saciado. Paro, espero. Cinco minutos e a sensação térmica é outra e me afunda uma angústia sem freio. O telefone está ao lado. Três chamadas perdidas. Devia mesmo estar muito cansado. Esperar causa exaustão. Nenhuma das que eu atenderia. Ainda são seis e quarto. Preciso soltar esse aparelho e levantar pra desligar outros. A luminária está acesa e o som marca no visor digital o número 16. Posso memorizar e usar pra o dia em que resolva começar a fazer apostas. Talvez não seja esse meu número de sorte. Lembrei: é um álbum antigo do Emílio Santiago que escondo numa caixa, longe da estante onde ficam meus preferidos. Que foda! Definitivamente os jogos de azar não são pra mim. Fecho os olhos. Revivo que dias atrás grudou a coxa no meu pau pra comprovar o quanto o deixa duro. Volto ao estado só de pensar no depois. Eu por cima, sua coluna em curva sinuosa, as pernas bem afastadas e a boca apertando no lençol amarrotado. Vontade de ligar fazendo o convite. Mas o que digo primeiro? Caí da cama? Pensei em você a noite inteira? Sei que ainda é cedo... Discando. Que foda! Ainda nem sei como começar. Chamando. Chamando. Claro que não atenderia. Não se liga antes das sete pra ninguém. Nem que se tenha intimidade por demais. Preciso aprender a trabalhar melhor essa ansiedade. Apertar os dentes e conseguir conter um ataque de claustrofobia. Essa é minha meta. Faz mais de uma hora que estou acordado. Será que os velhinhos me achariam esnobe se fosse correr na praia? Falta ânimo até pra levantar. Nem sempre se faz apenas o que se quer, diria minha mãe. O espelho podia mentir de quando em vez. Escovo os dentes na esperança de que algo melhore. Nada. Lavo o rosto. Também não adianta. Música. Preciso desenvolver atividades. Dentro de casa é difícil ser criativo. Sem saída, lavar a louça de ontem. Jantar cretino aquele que passei uma hora na condição de expectante e tive de comer o pene limão mais ácido do que qualquer piada com moral tipo: se colhe o que planta! Foi rápido. Melhor limpar o sofá da varada. E mudar o disco. Regar as plantas. São nove. Uma eu tive de pôr pra fora. Estava doente e os remédios não faziam efeito. Que foda! Ainda está no hall do elevador de serviço. Três rodelas de abacaxi. Lembro do desjejum juntos. Quiçá sinta saudade da minha boca, do meu pescoço, das minhas torradas. Hora do banho. Será que ponho uma sunga depois?

Isso tudo só vem acontecendo desde que tentei explicar que preciso de mais atenção. Daqui a pouco completa uma semana a espera por resposta. Estou como um náufrago. Mas com a certeza de que no próximo sábado à noite estarei longe daqui. E no início da semana abafarei todos esses silêncios.