quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Maníacos, parlamentares e humoristas: qual a graça?

Apenas acompanhando o noticiário por uns dias, sem reportar nada a qualquer e essa noite pela primeira vez meu sonho fez um movimento pendular. Estava na redação de um jornal vivendo a mesma dinâmica louca que me fez dar um tempo no ofício. Entre regras e edições que mostram o recorte da realidade mais interessante para os menos alvissareiros – mais lembrados como chefes. Levanto sonâmbulo e antes das cinco estava num hospital.

Um gânglio crescido na nuca, por trás da orelha fez a primeira médica suspeitar de rubéola. Hemograma para verificar a presença do vírus e nada confirmado. O número de leucócitos estava em mais de seis mil e o de plaquetas em 234 mil por milímetro cúbico. Aparentemente normal em número e aspecto, resumia o exame. “Faça compressas de água gelada”, recomendou a segunda plantonista, antes de me liberar.

Ontem o incômodo pela infecção maldita me tirou o sono. E os vídeos noturnos aumentaram a dor de cabeça. Recebi o endereço de um amigo dos mais chegados e resolvi abrir, mesmo vendo o aviso sobre a inadequação para menores de 18 anos e que o Google dizia não endossar o conteúdo do blog. Apertei seguro no “estou ciente e quero continuar”.

Automutilação, anomalias, acidentes, estupro, tortura, decapitação e dor são alguns dos tópicos da página que explica: a palavra tragédia tornou-se uma aplicação costumeira para designar um acontecimento doloroso, catastrófico, acompanhado de muitas vítimas, ou ainda para descrever o desenlace de uma paixão qualquer que redundou num horrível assassinato.

Falando em assassinatos, a gravação de uma série deles foi a menos densa que vi. Mostrava três jovens de cerca de 20 anos que matavam suas vítimas como barras de ferro, martelo e outros objetos pesados. Os maníacos cometiam crimes com requintes de crueldade e registravam tudo de um celular. Na cidade de Dnepropetrovsk, na Ucrânia.

Achei que fosse montagem, mas uma pesquisa rápida pela web mostrou que não. Pensei em mudar pra outro tipo de crime, que já não me chocasse tanto e parei no twitter, na postagem do deputado Henrique Eduardo Alves dizendo: ocupei a tribuna, há pouco, para expressar minha indignação e revolta pela divulgação de um vídeo com uma denúncia torpe e absurda! Uma calúnia, uma montagem, feita por sujeitos desqualificados, não pode encontrar guarida na mídia do meu país!

O parlamentar falava da denúncia mostrada pela grande mídia de que ele, por suposto, recebia propina no mensalão do Distrito Federal que já vai muito além do DEM. O também nesse caso inclui quem está na cadeira que o deputado postula no próximo ano, o presidente da Câmara, Michel Temer, igualmente do PMDB.

Henrique diz que é tudo uma armação do ex-operador da Bolsa de Valores de São Paulo, Alcyr Collaço, denunciado por haver cometido operações suspeitas, investigadas pela CPI do Correios em 2005 e que teve prisão decretada, ficou foragido e depois o mandado foi revogado.

É importante dizer que tudo isso pode mudar. O site sair do ar a partir do pedido de internautas ao hospedeiro maior e os parlamentares que sutilmente se fazem eleger, fiquem inelegíveis.

Hoje é dia internacional contra a corrupção, instituído pela Convenção das Nações Unidas desde 2003. Data que faz lembrar o poder de mobilização da sociedade. Agora, se você está realmente muito cansado, veja pelo You Tube o vídeo da Mhel Marrer. É super divertido e até a dor de cabeça se torna passageira. Pena que o que é bom, e, paradoxalmente, imaginário - dure pouco mais de quatro minutos.

sábado, 10 de outubro de 2009

É de se combinar

Naquele rosto havia um mistério que me devorava as unhas mandíbulas nervosas. Algumas coisas eu confesso, outras não. Como esse é um território livre, devo dizer que me causa uma angústia visceral não conseguir interpretar gestos. Um pequeno intervalo observado vira um abismo, como se o tempo tivesse escala semelhante às taxas da economia chinesa.
Você bem sabe que sou expansivo, exagerado, ainda que não tenha tocado aquele projeto de artes cênicas, iniciado ainda quando começava os estudos pra ser jornalista. Mesmo com a interrupção, aprendi a vocalizar bem o que digo e ter asas ao invés de braços.
Movimentos contidos geralmente são mais difíceis. O minimalismo é uma experiência ainda um tanto desconhecida por mim. Por isso aquele descontrole, desculpe. É que na hora, de quando em vez não consigo entender que o seu clímax pode ser bem diferente da minha pressa. Mas, mesmo que me atirem uma pedra, pergunto: quem nunca errou?
Tenho uma amiga que fica louca na condição de expectante. Come chocolate – mesmo sabendo que não adianta e invariavelmente em meio a essa crise estará fazendo regime– e até vai sozinha ao cinema. Vendo alguém tão desacompanhado num ambiente que está passando de cultura a entretenimento, com direito a acréscimo de manteiga na pipoca e ruído na sala, eu normalmente acho que é loucura.
Um que eu julgava mais inquieto disse outro dia que tem recorrido ao shiatsu, florais de Bach e levanta bem cedo pra correr na praia. Quando nos falamos, ele lamentou o próprio estado de nervos, mas argumentando que a culpa era do caráter de urgência de uma decisão: aceitar o não um novo trabalho, tendo de mudar de cidade.
Hoje cedo falei com um terceiro, questionando sobre o que fazia quando não há nada além de espera. Ele me recebeu dizendo que o feriado iria bombar, já que era prontamente recebido como uma pergunta dessas. Pra aliviar, dependendo do caso, vale comer doce, dançar ou fazer qualquer outra atividade com o corpo, como musculação ou bater uma punheta.
Outro amigo tem o mesmo gosto musical que eu, ultimamente se demora mais com meus cds e compartilha um mesmo pensamento. Não há regras. Não adianta tentar conter bichos como a ansiedade. Eles correm soltos e nunca conseguimos bem ver a cara, só um vulto intempestivo. A gente até identifica a presença por causa do ritmo mais acelerado e o subir e descer de borboletas pela boca do estômago, mas interromper é impossível.
Minha angústia está passando. Dentro desse último mês o único que fiz foi tentar mudar em mim um aspecto que nada tem a ver com aquele movimento idiossincrático que você costuma questionar. Estou revendo minhas vozes de comando. Elas são tão perturbadoras quanto clichês. E essas repetições – percebi nada mais começar a escrever - estão passando a capturar os meus textos. Realmente devo ser apedrejado.
Acho que até a publicidade já cansou do modo imperativo, dando conta que ele vira jargão e passa a ser transparente. Volto a dizer que, a despeito do tempo, nem sempre vai ser possível reconhecer teu olhar. Estou me analisando e tentando reinventar. O meu olhar é de rabo de lagartixa. Portanto, que tal continuarmos aquela idéia de tentar transformar expectativa em combinação?

terça-feira, 14 de julho de 2009

Voltei a ser criança

Quando se é responsável por algo é que surgem claramente as idéias de zelo e determinação. E isso geralmente só acontece depois dos vinte. Foi com mais ou menos essa idade que escorei sonhos em outra casa, distante da dos meus pais. Tornei-me responsável por ela e, pela primeira vez, por mim, que estava lá dentro sozinho.

Era de aprender a ouvir. Entender outros vocábulos, como dor e fragilidade. Falar é fácil, eu sei, e mais meia leva de gente motivada pela máxima. É algo que sai, por vezes de tão automaticamente que também é quase uma verdade absoluta a ausência de resposta para a pergunta de agora: quem nunca se arrependeu do que disse num impulso?

Brhaaagtheeiiiihhriiiiiist! (Consegue pronunciar?) Esse é um dos sons que minha sobrinha de três meses costuma soltar com uma cara tão amassada num semblante roxo que sempre acho que vai cair no choro. Mas é só uma reclamação. A estrutura, dizem os cientistas, é completa. Certamente ela transforma pensamentos em idéias e sons.

Foi utilizando a ressonância magnética funcional que acadêmicos da Escola de Medicina David Geffen, da Universidade da Califórnia, chegaram à conclusão que o lado esquerdo do cérebro exerce o papel principal no processamento da memória da maioria das funções da linguagem, praticamente desde o nascimento. Essa descoberta já tem mais de quinze anos.

Tentando parecer crescido e razoável, deixo de dizer muita coisa. O ato de fechar a boca pode ser considerado estratégia dos incautos como eu. A velocidade com que as pessoas se comunicam é que me deixa assim, de quando em vez desapercebido e com vontade de parecer vegetado em um algodoeiro. Pensando em escrever absurdez para sentir emancipado feito o Manoel de Barros, que age assim justificando que a absurdez é que faz causa para a poesia.

Na natureza, seria uma imperfeição de dar graça. Mas aquilo, o caminho de areia parecido de uma minhoca não combinava com o piso frio da sala. Na hora de afastar a mesa e desfazer com uma vassoura, veio o movimento brusco. E o primeiro grito, e uma carreira em direção ao quarto e mais um som: aaahgthaaaaeiiiiithaaaaa! Desde pequeno não sofria de topada no dedão.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Hoje eu vou-me embora



Como essa é uma carta de despedidas, vou saborear até sorver todo o ar do quarto e asfixiar os poucos desejos que ainda guardo. Começo falando de mim, do princípio. De quando eu entrei aqui sem arrastar correntes. Sem carregar o fardo da trouxa das desilusões. Vinha apenas com uma camisa puída na gola e com dois furos no peito. De um passado bem resolvido.

Não peço atenção ao falar. Sei que você para pra me ouvir. Aproveitar de uma voz mais experiente, mais calejada de histórias que só deram certo por algum tempo. Pois sabendo desse teu desprendimento, dedico uma última música. Opened once, do Jeff Buckley.

No ambiente em que estou há meia luz. Não é a mesma das noites de lua e mais quase nada. Mas é mais segura. Sinto-me confortável na minha casa, vendo as paredes com pouca cor, o banheiro com duas coisas de cada e o baú onde está guardado um edredom de tafetá para os dias de romance e chuva.

Se eu digo que me sinto bem, não se apresse como de costume, e vá achando que eu me esqueci de tudo. É que estou feliz com minha decisão de fazer isso, custe o tempo e as mazelas que causar. Faço confiante porque já me conheço e sei que minha memória seletiva só arquiva o que é preciso, pra não me encher a cabeça de idiossincrasias.

Das lembranças, inclusive, não tenho a de ter sido por sequer um dia grosseiro com alguém que já mereceu minha estima. Sem medos, digo que te tratei com muito zelo, inclusive mais do que deveria. Com carinho até. Poderia recordar do meu polegar brincando na comissura dos teus lábios. Mas se hoje me arrependo desses excessos é pelo arbitrário jogo provocado para medir forças que debelaras enquanto eu continuei a te querer com disciplinados exercícios de oratória.

Sei que, contudo, você ainda jogará a responsabilidade do fim sobre minhas costas, com todo o peso que minha escoliose não suporta. O que não sei é se merecerei mais uma vez sua lágrimas, mas eu, fatalista que sou, prefiro acreditar no acaso. Não quero te punir com o poder de rusgas quase conjugais. Prefiro que se lembre de mim com a mesma doçura que havia na sua meia-voz quando pedia pra que eu te pegasse por trás com mais força.

Acho que já usei esse texto em outra ocasião, mas aquilo que eu fazia era cena. Fui sincero apenas em alguns momentos, mais delicados, como quando introduzia meu dedo indicador bem de mansinho pela beirada de sua peça íntima, tocando os glúteos. Quando eu te beijava também era muito verdadeiro. E nos momentos em que me deixava ser içado como se me submeter a todos os perigos fosse uma espécie de redenção.

Dos nossos cafés agora só resta o pó. Umedecido. Entorpecido. Parece que te vejo me fitando de olhos esbugalhados enquanto eu falo as maiores infâmias só pra impressionar. E você, jovem demais, sem conseguir dizer nada com os hiatos da gagueira. Mesmo tento aproveitado muito bem, sua juventude me cansou em alguns momentos.

Há muito tempo deixei de acreditar que a gente dá e não espera nada em troca. Você me deu muito, é verdade. Encheu-me de coisas das quais nunca precisei. Não queria conhecer teus pais, nem ir ao casamento do teu irmão, nem tampouco ter de viajar não sei quantos quilômetros pra isso. Não era assim que eu iria acreditar que o que você falava do alto dos seus 21 anos era verdade. Precisava de outras garantias. Eu sempre acreditei no nosso sexo e nos nossos sorrisos sincronizados. Mas era isso contra o todo o resto. E no fim eu percebi que a equação era desigual.

Você ainda vai encontrar tantas outras assim. E, mesmo sem que me peças, digo: não te desesperes. Os conflitos mais interessantes são como os dos Madrigais Privados de Eugenio Montale. Ele teve seu nome posto pelo ser amado em uma árvore e em retribuição batizou um incêndio na floresta com o nome dele.

Volto a dizer que essa é uma carta de despedidas e, portanto respondo as últimas perguntas que me fez para aniquilar, desde já, qualquer motivo para outra conversa. Farei sem me apegar aos teus compromissos familiares, claro.

Recebi sim tua mensagem, perguntando se eu queria ficar com você pra valer. Recebi também a que revelava que por causa da ausência de resposta você estava desistindo, concordando comigo, dizendo que eu venci. E a que mais tarde, durante a madrugada, pretendia me acordar, quem sabe pra tentar remediar o que foi dito num impulso juvenil.

Li tudo. Tudo depois de eu ter dado um basta nessa situação e lhe comunicado de tal gesto. Consegui isso graças a teus reflexos, tuas ironias, teus descasos. Obrigado pelos momentos bons, por me ajudar a esquecê-los e adeus.

Ilustração: Aureliano Medeiros
*Texto feito ondas quebrando em rochas, num ir e vir com mais força. Tirei daqui tempos atrás e agora publico novamente por me parecer a lua descabida. E as palavras leves demais. Publicado na revista LivingFor.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Uma negativa

Muita coisa mudou. Os olhos são de um cinza quase branco. O que havia de pigmentação negra também saiu de outras partes do corpo. Estão com o mesmo acinzentado. Dentes amarelados e espaços cada vez mais amplos entre eles. De quando em vez devora as refeições. Noutras nem trisca. São os anos que escoram irregularidades.

Nem bem se sustentava quando o compramos. Eu era bastante jovem e tinha a mesma falta de criatividade de hoje. Gostava de nomes simples, mas terminei por aceitar a sugestão do meu irmão caçula. Ele assistia e sonhava com personagens de seriados. Jaspion, Jiraya, Power Rangers. Foi de um deles que saiu Jephy, que nem sabíamos a forma graficamente correta, mas assim parecia ser - como deveria - mais internacional.

Fui eu quem aguentou as noites de quase miados e se manteve vigilante, afastando os gatos matreiros circulantes do quarteirão. Desde Xuxa que o quintal estava espaçoso e crescia grama. De início a gente nem parou pra pensar que poodle é diferente de pastor alemão. Só percebemos dois meses depois, quando aconteceu da primeira noite do outro lado da porta. Ninguém conseguiu dormir. Os latidos já tinham mais força.

Aprendemos a dirigir cedo. Eu e minha irmã, com cerca de dez anos cada. Na praia, com limites longínquos. Havia de ser fácil essa leveza de não enxergar canteiro qualquer. A cidade não demorou a chamar e foi da vez que a gente começou a julgar que em casa quem mandava era nossa mãe. Vão perguntar a ela se pode, era o máximo que meu pai dizia.

Jephy chegou por último, começou a interagir com o espaço e as pessoas de uma maneira estranha e terminou por achar justamente o contrário. Colou nele, que sempre foi quem manteve toda a estrutura funcionando. Era o único que trabalhava e nos dava abrigo e comida. Dezesseis anos depois e os dois vivem juntos. Dormem, tomam café, almoçam, jantam, vão à praia e alguns eventos sociais. São fiéis a tal ponto que a velhice do outro parece preocupar ambos.

Haver vivenciado três pares de separações é que me fez preferir plantas. Elas soam num evocar de rede de balanço dependendo da intensidade do vento. Caso não deseje o bocejo, é só fechar as janelas. Abafar.

Em apartamentos conta ponto a praticidade. É fácil cuidar de plantas, especialmente quando são compradas em um viveiro, como todas as recomendações de como proceder, e para afastar qualquer dúvida, mantém-se placas como tudo detalhado. Quantidades em mililitros versus dias da semana.

No aniversário do ano passado foi que entrou uma que não tinha sido selecionada. Regalo de uma amiga. Veio num vaso vermelho do tamanho de uma laranja. Média, ainda mais. Pensei que fosse morrer. E foi sem esperanças que transplantei para uma acomodação maior. Como em outras, água duas vezes por semana.

Nosso convívio era morno até que a pus no hall de entrada. Lá de fora, parece vociferar. Água não quer mais beber. Em vão insisto agora só aos sábados. É o tempo de virar pra cuidar da vizinha e logo o chão está todo molhado. Começo a achar que pode lhe estar inundando uma carência de conversa. É um diagnóstico ouvido na televisão tempos atrás. O mesmo aparelho que fica quase sempre desligado, contribuindo com as ausências do recinto, como se recomenda fazer nos hospitais.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Separação de estréia

Meus pais têm uma diferença de onze anos. Estão juntos há três décadas. Tempo desses numa novela tinha um casal sendo alvo. As idades ainda mais distantes. As pessoas falavam. Das telas logo passou para o jornal e, por osmose, para as ruas. Virou a polêmica. Pra mim, algo demasiadamente natural.

Durante três dias passava pela porta de escola sem entrar. Só de uma que tive de ir até a portaria e voltar. Do outro lado da rua era que meu pai parava o carro. Não tinha sentido dar a volta e depois precisar contornar pra pegar o rumo do escritório. Naquela manhã o semáforo não abriu logo que atravessei as duas vias. Foi obrigado a usar a tática do fingir.

Minha irmã chegava junto, mas era mais fácil de despistar. Bastava parar num carrinho de balas que ocupava parte do asfalto e atrapalhava a entrada de veículos e comprar dez xibius. Cada uma custava dez centavos, valendo toda a aquisição, portanto, um real.

A cena era necessária porque cumpria suspensão. Penalidade aplicada a um desordeiro que não teve a oportunidade de explicar que a manga que levava na mão na hora do intervalo não tinha sido derrubada do pé, senão apanhada do chão. Com Padre Prata valia o ditado “contra fato não existe argumento”. Fui visto carregando a fruta. Ponto. Tinha feito sem autorização. Ponto.

Devia ser o escape dele, que não podia ocupar suas lacunas de outra forma. A culpa era dos votos, mas ele punha em quem queria. As mangueiras despertavam um tipo de ciúme especial. Eram quatro. Frondosas e de sombras largas. Bancos faziam ciranda e viviam cheios de adolescentes e meninos ainda mais jovens, sem poder namorar.

No ensino religioso a pragmática é essa. Dois sexos não se encontram nas classes de educação física nem a qualquer outra hora em lugar algum. Por isso que bem cedo se aprende a ser clandestino. Lembro de uma garota que ficou falada pelos corredores porque transou com o namorado na escada de um hotel fora da cidade, onde acontecia uma competição desportiva. E de outra que engravidou e foi expulsa.

Eu tinha menos de quinze. Achava umas meninas interessantes. Namorei três no intervalo de meia dúzia de anos. Essa não era a média. Alguns companheiros de sala nem tiveram a chance. Dedilhavam em pensamento. Durante a maior parte do tempo ficávamos contemplativos. Aquilo não era desejo sexual nem sequer por descoberta. As regras num lugar como aquele serviam para ser quebradas. E ficar, além de um desafio, era um termo novo.

De maneira renitente questionava o que se passava com elas. Não demonstravam qualquer inquietação com a montanha de imposições. Falando em regras, quase todas já tinham passado pela primeira vez. Algumas lá mesmo. A gente sabia quando acontecia no banheiro da escola. A amiga mais velha era acionada e levava o absorvente. Praxe. E a informação sempre vazava.

A natureza feminina faz apontar seios mais cedo. O estirão dos garotos acontece cerca de dois anos depois. Comprovado cientificamente. E esse espaço gera um abismo quando se é jovem. O melhor era espiar as meninas fartas, de 17, que achavam graça. Só agora, perto dos 30, percebo com quem gostam de deitar e que, de fato, são muito mais discretas.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Três dias depois

Foi pra me encabular. Numa sexta-feira disse que era a vez que aceitaria com honras meu pedido de afastamento. Ainda que não entendera qual o novo ou mesmo motivo. E levasse até a segunda para se reprogramar.

Choro baixinho. Três rapazes tocavam a uma distância de três mesas, seis pessoas e doze ouvidos atentos àquela conversa. Alvoroço dentro do estômago. Quase como se fizesse a empada de camarão voltar pelo gargalo.

Dois travestis passavam pela rua chamando menos atenção. Sacudidelas nervosas de cabeça. Nós éramos o centro. Entornava a quarta cerveja quando lhe vi terminar o primeiro e derradeiro café.

Em caso de um desastre seria encontrada na minha caixa-preta uma informação que nunca reneguei. Momentos assim pedem que nas veias corra algo mais espalhado. Traga mais um trago, disse. Nem sempre a ficha precisa cair em um local público. O luto vivo dentro de casa, onde ninguém me alcance.

Vi. Digressões sem nenhum ar de espontaneidade. Era bom de fugir. Assunto recorrente e vão. Em pouco tempo as palavras perderiam força, tiraria o telefone, num impulso faria a proposta e acordaria enrolado em nada, roçando e mordendo tuas costas.

Nossa dinâmica foi gasta por incertezas, conversas que levavam no máximo a uma semana de desejos separados. Vocabulário gasto. Paciência gasta. Amor que desgasta o corpo e deixa meus pensamentos colados num travesseiro morno até o meio-dia seguinte.

Peleja assim é a tal palavra que rima com dor, acreditam os poetas. E como a dor, termina. Só que o tempo é impreciso. Deixa ao longe a informação do preço que se paga no final, momento mais sofrível.

Tenho pelo menos o direito de numa próxima pedir antes um orçamento?

Não?

Feche a conta, por favor!

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Um amor para Cidinha

Distrito de Curralinho, município de São José do Egito, interior de Pernambuco, Nordeste do Brasil. Terra de muitos conflitos. A começar por uma ciumeira causada pela predileção pelo santo de nome comum por aquelas bandas. A capelinha em homenagem foi erguida e destruída umas tantas vezes até que os fazendeiros de lá de perto terminaram por desistir de São Pedro. Aleluia!

O espaço do padroeiro fica à beira do Rio Pajeú. Aquele mesmo que vai despejar no São Francisco, que vai bater no meio do mar, laiá. Com água boa, como toda que descansa no semi-árido, ali dá vontade de entardecer.

Da fazenda até as costas da capela Cidinha andava mais de meia légua. Saia depois do almoço e chegava na hora que o sol quase se punha. Foi num dia qualquer que deu de cara o com aprendiz de peão da maior propriedade de Riacho do Meio, Oswaldo.

O moleque tinha 14 e pico comprovados na certidão e mais em nenhum documento. Talvez tirasse se um dia quisesse votar. Ela tinha dois anos mais e uma aparência cansada. De fazer o mesmo trajeto para ver o avermelhado do céu daquele ângulo, de ser sozinha.

Era a primeira chance dele. Ainda vivia a fase de descoberta, de aprender a controlar o corpo, de sentir. Precisava desviar o olhar pra não ser tão apressado. Ninguém visitava aquele lugar que instantes depois ficaria sem luz, com insetos.

Foi aproveitando um momento de distração que meteu pela primeira vez. Sem reclamações, não demorou a gozar. Isso se repetiu por meses até que repentinamente Cidinha desapareceu. Circulou na redondeza que a fazenda de Zé Alcides tinha perdido sua melhor vaca leiteira.

O incompreendido

Manhã de domingo. Quase madrugada. O ponteiro menor acaba de alcançar o seis. Estou na cama, do lado direito que é o meu. Dormi outra vez, penso imediatamente. Devia ter saído pra uma balada dessas para garotos perdidos. Agora é tarde. Ou, cedo demais. Que foda! Poderia ficar inerte até que o resto da cidade acorde. Do lado de fora há sol. Paisagem muito diferente da dos últimos dias. Posso aproveitar e caminhar na praia. Mas só encontraria a turma da terceira idade e bêbados. Rolo até a ponta esquerda. Está fria e isso me agrada. Meu peito pela primeira vez sentia um frescor decente. Jogo a perna por cima de um travesseiro solto. Um, dois, três movimentos e me sinto saciado. Paro, espero. Cinco minutos e a sensação térmica é outra e me afunda uma angústia sem freio. O telefone está ao lado. Três chamadas perdidas. Devia mesmo estar muito cansado. Esperar causa exaustão. Nenhuma das que eu atenderia. Ainda são seis e quarto. Preciso soltar esse aparelho e levantar pra desligar outros. A luminária está acesa e o som marca no visor digital o número 16. Posso memorizar e usar pra o dia em que resolva começar a fazer apostas. Talvez não seja esse meu número de sorte. Lembrei: é um álbum antigo do Emílio Santiago que escondo numa caixa, longe da estante onde ficam meus preferidos. Que foda! Definitivamente os jogos de azar não são pra mim. Fecho os olhos. Revivo que dias atrás grudou a coxa no meu pau pra comprovar o quanto o deixa duro. Volto ao estado só de pensar no depois. Eu por cima, sua coluna em curva sinuosa, as pernas bem afastadas e a boca apertando no lençol amarrotado. Vontade de ligar fazendo o convite. Mas o que digo primeiro? Caí da cama? Pensei em você a noite inteira? Sei que ainda é cedo... Discando. Que foda! Ainda nem sei como começar. Chamando. Chamando. Claro que não atenderia. Não se liga antes das sete pra ninguém. Nem que se tenha intimidade por demais. Preciso aprender a trabalhar melhor essa ansiedade. Apertar os dentes e conseguir conter um ataque de claustrofobia. Essa é minha meta. Faz mais de uma hora que estou acordado. Será que os velhinhos me achariam esnobe se fosse correr na praia? Falta ânimo até pra levantar. Nem sempre se faz apenas o que se quer, diria minha mãe. O espelho podia mentir de quando em vez. Escovo os dentes na esperança de que algo melhore. Nada. Lavo o rosto. Também não adianta. Música. Preciso desenvolver atividades. Dentro de casa é difícil ser criativo. Sem saída, lavar a louça de ontem. Jantar cretino aquele que passei uma hora na condição de expectante e tive de comer o pene limão mais ácido do que qualquer piada com moral tipo: se colhe o que planta! Foi rápido. Melhor limpar o sofá da varada. E mudar o disco. Regar as plantas. São nove. Uma eu tive de pôr pra fora. Estava doente e os remédios não faziam efeito. Que foda! Ainda está no hall do elevador de serviço. Três rodelas de abacaxi. Lembro do desjejum juntos. Quiçá sinta saudade da minha boca, do meu pescoço, das minhas torradas. Hora do banho. Será que ponho uma sunga depois?

Isso tudo só vem acontecendo desde que tentei explicar que preciso de mais atenção. Daqui a pouco completa uma semana a espera por resposta. Estou como um náufrago. Mas com a certeza de que no próximo sábado à noite estarei longe daqui. E no início da semana abafarei todos esses silêncios.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Corrida úmida

Já não sei se é melhor que chova ou dias de sol. Nos pontos de ônibus as pessoas parecem tentar escapar de um naufrágio. Depois de um mês de férias parece que havia esquecido o que é o trânsito de uma cidade. Pior é saber que não existe nenhum lapso. Passei por ruas movimentadas e vi carros parados no horizonte semaforizado enquanto caminhava por outras calçadas. Mas elas não era iguais.

Tudo parece caótico. Procuro compensações. Conto o tempo por músicas. Troco a pressa por canções. No meu carro levo um álbum de Jussara Silveira, Teresa Cristina e Rita Ribeiro. São Três meninas do Brasil. Tudo ao vivo, sem o tempo métrico das gravadoras. Da quinta faixa do álbum – de onde prefiro começar a ouvir – até a décima são quase quinze minutos.

Mais quinze, só que anos atrás, eu conseguia sair de casa, em Candelária, e chegar ao Salesiano, na Ribeira, no mesmo quarto de hora. Naquela época ouvíamos no rádio o noticiário da manhã. Não sei quanto isso dá de tempo em poesia, mas a coisa variava de treze até dezoito minutos. Dependia de quão espaçados estavam os pensamentos do meu pai.

Nunca foi bom contador. Parecia querer ser, tanto que não sei quantas vezes ouvi causos da construção do canal do Baldo e da utilização das águas do Potengi. Eu via mais interesse nos olhos que nas palavras dele. Eram contemplativos, assustados e coniventes com as transformações. Só que não podiam sonorizar. E também por isso temos memórias diferentes.

Com minha irmã havia discussão todas as manhãs. Disputávamos o espaço no banco da frente, numa época em que o cinto de segurança incomodava minha coluna e amassava a farda. Era, portanto, dispensável. Aquele local não tinha importância apenas por dar pra ver correr o olhar do meu pai sobre as ruas já cada vez menos esvaziadas, mas pra perceber os momentos em que havia mais risco, nas paragens, quando, sem palavras, sabia que ele encontrara algo novo naquele trajeto diário. Nesse momento sentia o limite dos meus dedos no freio de mão. Já conhecia sua serventia.

Aquela mulher de lenço no cabelo e cigarro queimando por fora do vidro estava assim desprotegida no início do dia, pouco depois das sete. Foi o que me fez lembrar o caminho até a escola. Distração como a do meu pai não se aceita num congestionamento em quase zona de conurbação. Rejeito a idéia, acelero e deixo o ruído dos pingos abafar por completo meu desejo tão disparatado que não tenho condição de dar-lhe forma.

Pela manhã é melhor encarar como um sortilégio poder contar quilômetros em sons. A distância percorrida até o trabalho talvez não seja um terço da dos tempos de estudante, mas me ocupa a mesma calma do relógio.

Do lado de fora as pessoas também mudaram. Faces puídas e quase-roupas. Na minha sala de aula, as meninas já vestiam calças. Mas nas horas de lazer levavam trajes de avós: meias até os joelhos, saias, blusas com mangas compridas e gola alta. Era uma moda diferente. Agora até mesmo esperando o transporte público elas mostram brilhos, fendas. Algumas aceitam transar na vertical. Sexo anal, oral, sem compromisso, sem culpa.

Pensar que tudo isso pode ser por causa da pressa. Do tempo no asfalto, gasto.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Traje passeio



- Vamos levar na mochila um calção de banho. Quem sabe q gente não encontra um lugar pra mergulhar.

- Imagine se algum de nós terá coragem com esse frio que faz.

A viagem programada com tanta ansiedade seria tão curta quanto o diálogo esmiuçado e a essa altura já estava pela metade. Depois de juntar uns cacarecos fomos a caminho da setecentista Ouro Preto. Na estrada, janelas abertas e uma rala névoa por cima do verde do lado de fora. A cidade encravada num vale tem uma forte carga de energia humana em suas ladeira e igrejas. Em frente a uma delas fiz um pedido.

Ele parece ter sido atendido por todo o caminho. Por entre os mirantes, do alto das montanhas que, nada mais subir, descem vertiginosamente. Por entre as montanhas, de onde menos se espera, surgem destemidas cachoeiras. À margem dos rios, os povoados se formaram na época áurea do pó dourado – quando ele ainda era considerado um divisor de águas.

Foi em Mariana que conheci Jaqueline. A única comerciante do distrito de Cachoeira do Brumado. Ela era a salvação daquela idéia de não ter posto a sunga dentro da bolsa. Depois de encontrar a queda d´água pensei em me livrar daquele jeans frouxo e entrar apenas de trajes sumários.

Claro que mais uma vez o mínimo de bom senso que me resta foi responsável por me fazer correr a chave do carro e sair em busca de uma loja no centro. Antes de encontrar a direção confesso que quase desisti. Mas como não se pode deixar tudo nas mãos dos santos, tive eu de me esforçar e tentar redimir a falha grotesca daquela manhã.

Apenas três paradas para pedir informação. Numa ruela igual às outras quatro encontrei uma janela de onde se avistava pouco mais de dez cabides pendurados. Era o único comércio da região. Uma tela verde impedia a entrada de insetos. Minha voz conseguia passar por ela, mas não foi suficiente para competir com o alto volume da televisão ligada perto dali.

Não vi campainha e arrisquei perguntar a vizinha, que disse: Jaqueline está na escola fazendo a comida pra o baile na praça. A escola estava situada na esquina. De dentro da cozinha, onde os quitutes estavam sendo preparados, arranquei a moça pelo braço e, juntos, saímos pela rua principal.

As peças eram tão cavadas quanto os biquínis asa delta usados nos anos 1980. Escolhi então um calção de listras azuis, verdes brancas e muitas outras cores. Como não havia provador e eu e a comerciante a tal altura já tínhamos muita intimidade, fui vestir no quarto onde dormia com seu marido.

Ou o espaço tinha sido monopolizado por ele ou ela era torcedora fanática do Cruzeiro e gostava de colecionar fotos de mulher pelada. As paredes estavam cheias dessas manifestações de auto-afirmação de adolescentes. Enfim, estranhei estar ali, mas a roupa me caiu muito bem. Tinha comprimento até os joelhos. Peguei outra do mesmo tamanho e levei. Duas bermudas, R$ 20,00.

Sentindo o movimento dentro da casa-loja, a filha de Jaqueline pulou no sofá. Curiosa que só ela, ouviu nossa conversa, mas tinha há pouco sido incapaz de atender aos meus gritos desesperados. Exercitei a paciência lhe oferecendo uma carona até o centro de artesanato, ao lado da cachoeira.

A água que caía de uns dez metros de altura estava tão gelada quanto a cerveja servida numa palhoça à beira. Foi uma tarde e tanto. No banho, todos os momentos foram registrados. Vão ficar impressos no papel fotográfico e nos arcabouços da minha memória, na pasta dos momentos mais felizes.

*Texto publicado na revista Vitrine.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Minha oferta

Aquela situação era tão ruim quanto imutável. Você sabia antes mesmo de ouvir, mas da minha boca não saiu apenas uma confirmação. São palavras de um homem resignado que aceitou arcar com o ônus da desconfiança indesejada na tentativa de varrer dali uma montanha de detritos. Um homem que quer viver sem expectativas, com combinações. E sabe que pode ser feliz assim.

Já não precisava trocar a roupa da cama, molhada e lavada de tristeza. Por leveza, restava apenas perfumar a casa, ouvir as músicas que só eu sei que são nossas e diluir o tom ora amargo da poesia, lembrando de quando quebrou o condicionador de ar e o calor te fez dormir livre, com roncos, requebros e meneios harmoniosos.

Não é novidade que eu só repouse depois, que te veja da forma mais desprotegida. Mas por uma noite deixei de lado minha metade contemplativa e fui só movimento. Começo cheirando suas orelhas e fungo o cangote, ainda apalpando as costas. De bruços, seu corpo deixa evidente o par de covas que parece sustentar a coluna. Ali, dedico mais tempo.

A mão desce um pouco mais, acaricia as coxas e no meio delas parece querer enfiar o dedo. Sinto a pele lisa, ignorando o atrito. Há apenas mansas curvaturas e meu desejo naquele quarto com pouca luz. E esse é o cenário ideal das minhas promessas.

Adormeço também embriagado, festejando a inobjetividade dos gestos para redescobrir o caminho já escolhido tempos atrás. Ao passar das sete o despertador soa. Ainda não recobrei meu estado de consciência, parece que apaguei de vez e me assusto com um beijo de despedida e solto um sorriso de canto, malemolente.

Hoje acordei brisa. Mesmo com o sangue ainda espalhado dos tragos de ontem. E além de palavras dedicadas te ofereço um punhado de mar pra falar sobre importâncias.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Remediado está

Deveria ter seguido a carreira artística. De quando em vez tenho uma inclinação curiosa de estar na pele de outra pessoa. De sentir o que eu não consigo quase sempre sendo o mesmo menino franzino da minha infância. E nos últimos tempos mais especialmente de poder saber como é viver uma terceira pessoa, uma afronta.

Nunca fui outro em qualquer relação. Bate um desconforto crer que poderia enlouquecer como já vi se passar. Dizem os mais cultos que as máximas empobrecem os textos. Mas algumas de tão certeiras não podem ser substituídas facilmente. Dois é bom, três é demais. Esse é um dos melhores ditos. Difícil é controlar os impulsos.

Dentro de mim há duas forças. E não falo aqui literariamente de uma metade lisa e outra crespa. Ou de conceitos baseados na filosofia e na metafísica da cultua chinesa como yin e yang. É uma proposta muito mais visceral. De ser carne e sentimento em um só corpo, ou de uma maneira mais poética, como já disse Caetano, a dor e a delícia.

É impossível prever quando se será o causador da discórdia. Por isso acho que todas as pessoas entram despreparadas, sem ter tido a oportunidade de passar por algumas sessões de análise pra saber até que ponto ir e como se comportar diante do novo.

De fora, a pior situação sempre parece a de quem passa a ser menos solicitado e que comumente fica se sugestionando o que teria feito de errado, o que já é um grande equívoco. Como defende Lacan, o nosso desejo encontra sentido no desejo do outro. Faz parte da teoria dos espelhos. Nos final da contas somos todos narcísicos, buscando nos reconhecer nos olhos de alguém.

Uma amiga arregala os olhos de tal forma que parece que eles vão pular da caixa. É assim a cada tilintar de taças ou tulipas. Calculando os movimentos friamente parece que se está participando de uma película de terror. Só se torna mais sutil porque o gesto recorrente acontece entre amigos e tem querer no meio. Sempre brindo e a perdôo.

Nos trajetos da minha memória nunca valeu desviar o olhar. Por outras paragens há reflexos. Nos lagos. No mar. E encontrar-se parece fácil. O sonho oceânico da poesia de Zila Mamede arrasta. Mas não acredito por qualquer regra intrínseca nas leis da nação. É que realmente parece que esse é o ponto crítico e que delimita o adoecer da relação.

Eu tenho a sorte de já ter conhecido o amor e vivo de paixões encontradas no meio de alguns terrenos. Neles existe muito campo pra seguir apressadamente e árvores, mas no meio da correria, invariavelmente, esses espaços viram descampados. Acontece de uma forma muito rápida. Basta uma noite sem adormecer sentido o cheiro guardado na nuca.

Paixões são covardes feito a maioria de nós. E tentadoras como muitas situações. Basta viver pra se complicar. Digo isso vendo minhas prateleiras internas de sentimentos escalonados. Guardados de quem insiste em seguir vivendo, vivendo e não aprendendo. E que tem a calma apertada dos que acreditam que, mesmo já tendo a experiência e não querendo repetir, pode acontecer outra vez.

Mas já é tarde. Apesar de meu relógio biológico ter perdido a noção, um na parede lembra que passa das duas da madrugada. É hora de deslanchar uma plêiade de teorias e lembrar que no descanso noturno dá pra se fugir da dor da dissolução. O cansaço agora é o maior algoz. Vou dormir.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Seguir

Os números pares me parecem mais confiáveis. Se não for assim sempre um fica isolado ou divide as contas só pra complicar. Talvez essa teoria tenha algum reflexo no penar de ficar só. Gosto de grupo, de bando, só que devidamente equilibrado.
Isso pode até já ter virado um transtorno na minha rotina. Quem ainda não conhece essa mania, de quando em vez ri ou comenta sobre minha aflição ao ver o volume da TV em um número ímpar.
Em outras fases já foi pior. Cheguei a contar o número de discos, de livros, a cutelaria e mais um par de coisas. Morar sozinho e ter tantas tranqueiras e cômodos pra enfiá-las me fez relaxar um pouco, mas continuo sem pisar no rejunte do piso. Assim, sigo andando de quadrado em quadrado.
Das esquisitices guardo ainda a de colocar as almofadas enfileiradas no sofá. A casa pode estar de ponta cabeça, mas o colorido delas sempre obedece a mesma sequência. Outras são momentâneas, afortunadamente.
Faltava pouco para o verão ser oficialmente deflagrado no calendário. Onde vivo faz sol durante quase todo o ano e, logo, ir à praia em janeiro, maio ou novembro dá igual. O ano estava acabando. Entrei no carro numa terça-feira pela manhã em direção a um recanto mais tranquilo do litoral.
Coqueirais, parada, pés descalços, passos. Nova parada, encantamento, reflexão e volto a andar. Pouca gente com tempo livre no meio da semana feito eu. Na minha casa não gosto de nada que um dia já abrigou vida. Conchas e afins não passam da porta. Mais um cacuete. Mas naquele dia havia muitas pedras no chão. Pequenas rochas iluminadas pela luz da manhã.
Ser pedra, como já disse o Manoel de Barros, possui vantagens. Elas irritam o silêncio dos insetos e são batidas de luar nas solitudes. Acredito também nos simbolismos originários das pedras, no ar de contemplação que carregam.
Podem ser chutadas pelos menos sensíveis ou escolhidas a dedo. Naquele dia eu, que tinha algumas pelo caminho, acariciei, lavei com zelo em água salgada e carreguei comigo. Guardei-as no carro até hoje. 26 no total, entre bancas, amarelas e algumas quase rosadas.
Aquele era um dia de despedidas. O último passeio à beira mar antes da chegada do verão. Era também o momento de me livrar de alguns percalços. Obstáculos que deveriam ser simplesmente contornados, mas que pelo fascínio que provocaram foram encarados, destruíram minha segurança e ajudaram a construir um novo ponto de vista.
Não preciso de manias bobas além das que já tenho sem conseguir me livrar de vez. E, definitivamente, essas pedras podem ser encontradas por outros que, assim como eu, devem marcar a hora da descoberta com um ponto final. Sem reticências, o hoje é mais feliz.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Pra ser interessante

Precisa acordar brisa, com a languidez de um corpo em curvas. E ter porto em meus braços de acarinhar pensamento durante os dias nublados. É também de sorrir de um canto ao outro, sem preocupações durante pelo menos os primeiros cinco minutos da manhã.
Precisa usar chinelos e ter cuidado com os pés. Gostar de experimentar banhos, harmonizando sais, som e luz. Há que se saber cozinhar ou então ter coragem de comandar caçarolas para um jantar combinado. E agir sem quaisquer pudores.
Basta ter um número de telefone e, entre tantas tecnologias, se satisfazer com uma máquina fotográfica. É preciso ainda saber dançar, escolher almofadas e plantas, dobrar guardanapos, fazer surpresa e guardar segredo.
Tem que entender de algum tipo de bebida. Ensinar sobre como escolher antes do primeiro trago, brindar mirando no olho e rir quando o sangue estiver mais espalhado pelo álcool. Mas é preciso ter conhecimento que entorpecer-se é uma forma de fugir da realidade. Então, é prudente que tenha uma dose de sensatez.
Precisa saber levar sobreiros. Usar bloqueador para o sol e repelente nos momentos de acampamento. Tentar ser lícito é uma boa, assim como, durante um passeio, nadar até a beira da praia e voltar ofegante. Ainda é necessário ser complacente em lábios e ter urgência de tato e paladar.
Para ser, de quando em vez se faz urgente sorver inutilidades e gostar de ser pedra para conseguir contemplar o movimento alvissareiro das formigas. Ter humor, peito largo e caixas para guardar reminiscências também conta ponto. Mas, sobretudo, precisa ter um ar exibicionista ao se espreguiçar.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Gente carente e assaltantes, por favor, longe de mim

Havia tempos que queria ter uma bicicleta. Depois da experiência quando ainda era adolescente tive uma segunda vez já com cabelos brancos. Os fios é que apareceram cedo. Tenho 26 anos de idade e eles já tomam quase metade da minha cabeça. Mas a despeito do que possam parecer depois de tomar emprestada por alguns meses a bike de uma amiga, tomei gosto e resolvi comprar uma.
Percorri um par de lojas, liguei para um amigo que pratica corrida de aventura e entende do riscado, pedi orientação, me assustei com os valores, com a formação de cartel que os vendedores justificam dizendo que o preço é tabelado pelos fabricantes e por fim escolhi a minha. Uma Merida, preta, com 24 marchas e aro 21, ideal pro meu tamanho, já que a altura do meu cavalo é 89,5 centímetros.
No instante em que estava na loja conheci quatro pessoas que pedalam pela cidade, fazem trilha em dias que acordam fora de estrada e saem sempre em grupo. Todas elas se apresentaram, conversaram, pediram meu telefone – e eu dei – e me ligaram em menos de 24 horas pra convidar para algum passeio.
Agradeci e neguei todos os convites. Em geral as pessoas que pedalam me parecem muito carentes. Não tenho falta de amigos e gosto de bancar o sedentário em uma mesa de bar, dividindo cervejas com os mais chegados. Logo, não sirvo para ser atleta e tampouco tenho a disposição de pedalar todos os dias.
Minha bunda ficou toda dolorida depois da primeira hora em cima dela. No dia seguinte foi ainda pior. Ainda bem que inventaram uma tecnologia fantástica que é a de acolchoar as bermudas com espuma feita para roupa de astronauta. Essa, em minha opinião, só perde para a invenção do chuveiro elétrico e, claro, o controle remoto.
Passei a andar em dias intercalados. De quando em vez com um ou dois amigos. Noutras sozinho, ouvindo silêncios ou alguma seleção musical com fones de ouvido. Bons momentos.
Passava das oito da noite quando resolvi largar o penúltimo capítulo da novela pela metade para das umas voltas. O percurso era menor que o habitual pelo nobre motivo do encontro pouco mais de uma hora depois num boteco. Saí de casa com todos os equipamentos de segurança, água, o Ipod, telefone e um molho de chaves.
O vento batia forte no meu rosto no momento em que descia uma avenida larga. Vinha pelo acostamento. Os carros que esperavam o semáforo passaram por mim. Peguei embalo. Isso em ajudaria numa subida logo adiante. Concentração. Quando levantei a cabeça havia um homem encapuzado descendo um morro, vindo em minha direção.
De cara tomei um susto. Não pela arma na mão, mas pela primeira vez tive medo de uma máscara de carnaval. Era tipo um lobisomem, só que com um revólver apontado pra mim. E aos gritos. Logo chegou outro folião pra curtir comigo. Ele mandou e eu obedeci. Desci da bike e lhe estendi. Questionei quando pediu a bolsa. Mas só tem água e as chaves de casa, retruquei. Tire a mochila e vire!
0004-2009-00332. Esse é o número do boletim de ocorrência que fiz depois do episódio. Mais uma vez não vai dar em nada. Na hora nem viatura havia na delegacia mais próxima. E por aquelas bandas, perto do Parque de Natal, como disse o policial que me atendeu: a coisa ta feia. Bandido atira mesmo.
Voltei pra casa com o vento batendo no rosto entristecido. E pensando no conselho que minha mãe me dá e que, seguro, recebeu da sua. Hoje, discordo. Antes mal acompanhado do que só. Com ciclistas obcecados em aumentar o grupo eu só ia ter de tomar um açaí no final da noite e fazer ouvidos mocos ou terapeutizar os mais aflitos.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Um rapaz da moda

Dava pra ver pela arrumação do loft que não havia preocupação em dispor de objetos. Aquele era um refúgio de relações afetivas amistosas. Encontros fugazes e tórridos que quase sempre não tinham seqüência. Tão espaçados quanto a manutenção do gás da geladeira que sempre abrigava refeições ligeiras com o prazo de validade expirado.
As paredes eram quase sem cor. Precisavam de uma tinta. As janelas viviam fechadas, assim como a varanda com portas corrediças de vidro. A luz entrava, mas o vento não. E a poeira se alojava por sobre os móveis comprados em uma loja de segunda mão.
Eu vivia dentro desse espaço sem conviver bem com espelhos. Tinha apenas um dentro do apartamento. E ainda assim nós nos comportávamos como Calistenes e Alexandre, o Grande. Tudo seguia bem até que meu lado conquistador emergiu e cismou em querer ser divino. E a filosofia, que nada tem a ver com o reflexo da realidade, não poderia ser submetida a tão tolo capricho.
Era uma época de muitas mudanças. Eu queria conquistar uma garota que quando deslumbrava a rua com um sorriso, por aquela janela, o espírito anunciava a total imortalidade da sua beleza. Ela resplandecia uma luz hiperbórea e eu tinha a amoralidade do suor como desgaste. Eu era calor e preferia tato. E ela, brilho.
O dia começava bem cedo e tinha horas marcadas. Rotina de gente moderna, que era vista e ouvida em vários lugares. Pagava um preço alto por isso. Sentia ansiedade e repetia o discurso social de aceleração das máquinas, dinamismo. Foi assim até conhecer a dona do sorriso mais cortante do bairro e descobrir que minha onipresença me fazia ausente de mim mesmo.
Meu desejo preferia os anacronismos. Parecia não se preocupar muito com o andar, mas jogava o quadril repetindo movimentos que teriam sido milimetricamente ensaiados. Parecia também não se preocupar com a maneia de vestir, mas certamente aquela estética desordenada custava horas de produção. Difícil entender essa colcha de retalhos. Ora trivial, ora desconexa.
Só queria uma aproximação. Não pediria que dividisse comigo sua eternidade. Minha pele mundana tinha urgência de nudez e de possibilidades. E para conseguir estender-lhe a mão, construí com meu reflexo uma trama de anatomias inconfessadas. A despeito de múltiplos obstáculos, fingindo ter coerência, imitei para ser aceito.
Casaco cool de estilo aviador feito com materiais orgânicos ficando por cima da camiseta com fibra de bambu. Cabelo desgrenhado, calça skinny e botas rasteiras de camurça verde, como as do Peter Pan, usadas sem meia. Vestido dessa forma vi que ser contemporâneo é mesmo instigante.
Foi numa festa nosso encontro por mim premeditado. Ela me olhou, mas não me viu. Parecia ter dificuldades em escolher entre tantas da mesma opção. Eu estava igualzinho aos outros caras. Ali, era como uma massa de trota salgada. Sem histórias, experiências. Sem um diferencial. Tão entediante que não acrescentava nada.
O retorno ao meu território aconteceu antes de virar abóbora em público. Naquele espaço de relações furtivas, tirei a roupa, deitei na cama e acordei desse sonho ainda excitado. No som, em modo repeat, ecoavam versos da nona faixa do álbum déjà-vu, do Metrô. Letra de Evaldo Gouvêa e Jair Amorim. “Um rapaz da moda eu vou ser pra ver se ela gosta de mim...”.

*Texto publicado no Anuário da Moda Potiguar - POSE.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Em oito minutos

Já tive umas das melhores transas da minha vida. Sou capaz de engolir sanduíche e batata frita com a ajuda de um refrigerante se estiver atrasado pra o trabalho. Torço pra sair do banco. Danço duas músicas debaixo do chuveiro. Consigo prepara quatro tapiocas ou dois miojos. Decido ir à praia, visto uma sunga e saio. Posso viver intensamente e lembrar isso pelo resto da vida. Acredito que é tempo suficiente para se virar o jogo. E, afortunadamente, em 2009 terei oito minutos a mais.
Para a noite de reveillon alguns cuidados. Cueca cor-de-rosa, sementes de uva guardadas, porco como prato principal da ceia – fuça pra frente e garante armários cheios o ano todo -, chinelo de couro branco com dinheiro preso na sola por uma fita adesiva pra começar o ano pisando na grana. Bom, ao menos os orientais dizem que a energia entra pelos pés. Então achei que tentar não faria mal.
Cumprir tantos rituais devia ser pra tentar substituir a ausência do mar. Havia não sei nem quanto tempo que sempre na virada eu pulava sete ondas, apesar de preferir os números pares. Esse ano começou mesmo diferente. Na laje da casa de um amigo, onde sempre há um abraço acolhedor, um churrasco ao ponto e muita gente bacana. Aliás, bacana e encarando uma proposta “avonts” mesmo na noite de reveillon.
Pouca gente levava um relógio no pulso e ninguém se lembrou de olhar as horas. Puxei o celular. Marcava 11h52. Os fogos começaram a estourar. Dançando, ninguém tinha se dado conta de que já era ano novo – ou não! Abraços, brindes, fotos.
Doze meses são suficientes pra se ficar exausto e entregar os pontos. Mas como já disse Drummond, aí entra dezembro e com ele a idéia de renovação no final do mês, de uma dia para o outro.
Quero uma nova história esse ano. Entrei nele trazendo oito minutos do que ficou no ontem. E hoje meu maior desejo é saber aproveitar esse tempo, que pode parecer pequeno, mas nele há espaço para muitas miudezas de que preciso.