segunda-feira, 1 de julho de 2013

Hibridismo em cena


As cortinas estão abertas, mas é como se abrissem e fechassem. Beth Goulart revela e suprime nuances de Clarice Lispector. Também se mostra no placo e se esconde para que outras surjam. É como se fosse uma brincadeira infantil, jogo que a atriz defende acontecer desde a idade mais tenra: como a leitura de pai para filho, a apresentação do mundo dos livros.


Numa sociedade de forte cultura de criação de mitos, Beth Goulart passou por um longo processo de angústia até colocar em cena uma das mulheres que mais admira. Foram exatos dois anos de buscas, leituras de teses e análises de entrevistas e os mais diversos materiais até concluir a feitura do espetáculo “Simplesmente eu, Clarice Lispector”.
Nele há muitas sutilezas, pouca desconstrução. São subterfúgios para não expor a vida sobre a obra, maior legado da escritora nascida na Ucrânia e criada nos arredores de Recife e do Rio de Janeiro. No teatro não são contadas passagens marcantes da vida de Clarice como o incêndio provocado por um cigarro aceso durante a madrugada e que, dormido entre os dedos, terminou por cair sobre o colchão.
O episódio de 14 de setembro de 1966 que a deixou três dias internada sob risco iminente de morte e mais dois meses hospitalizada, com inúmeras queimaduras pelo corpo, profundas cicatrizes na alma e por pouco não lhe amputou a mão direita, não é explícito, apesar de Beth deixar a mão retraída ao admitir essa “persona”, como costuma dizer.
“Eu falo dos momentos mais difíceis com muita delicadeza ou quase não falo: eu mostro. Costumo dizer que quem conhece a Clarice, reconhece. Quem não a conhece, passa a conhecer. Meu interesse nunca foi contar a história de uma forma linear e biográfica. Dou fragmentos, pistas sobre a vida e a obra dela para que cada um faça seu encaixe.”
Os argumentos de Beth encontram palavras de outro artista. As do bailarino Kazuo Ohno, figura máxima da dança-teatro expressionista conhecida como butô. O mestre desse estilo surgido na vanguarda japonesa dos anos de 1950, como resposta ao terror da bomba de Hiroshima – que começou a dançar tardiamente, aos 43 anos, e fez isso inclusive sobre uma cadeira de rodas – dizia que o artista não pode dar mais de 70%. O resto quem completa é cada um.


Ela, também experimentada nos palcos, complementa: “A arte não se explica, mas faz sentir e propõe questões para que você tire suas conclusões. E isso ficou claro quando comecei a assumir minha dor. Quanto mais pessoal se é, mais universal se torna. O pesar do ser humano é único, assim como a solidão e as grandes sensações. Eu só pude entender a solidão da Clarice quando chequei a minha solidão, minha angústia criativa, meu estado de graça e a personagem terminou um híbrido de Beth e Clarice.”
Essa e outras análises são fruto do único auxílio que Beth Goulart teve durante a concepção do espetáculo – todo o restante ela assumiu sozinha, do roteiro até a direção. O ator e diretor de teatro Amir Haddad funcionou como supervisor, lançando um olhar em cima do da atriz e propondo questões para ressaltar a consciência de Beth sobre o que estava sendo criado.
Haddad a convenceu de que aquela realização não era um depoimento simplesmente de Clarice, já que Beth se revelava tanto quanto a escritora. Para uma falar da dor e da solidão da outra, precisava colocar a sua própria, tornar o espetáculo um ser vivo, mais humano. A essa observação e diferentes de pessoas que privaram da intimidade de Clarice Lispector e apresentaram mais vestígios, hoje se deve a existência, em cena, de uma pessoa “independente e que comanda”. É através dela que Beth consegue improvisar de Clarice no palco, se preciso for, e até durante a entrevista.  
“Isso é possível pela intimidade que eu tenho com a obra de Clarice, mas, antes de chegar a essa persona, pisei no terreno do desconhecido e passei por momentos muito angustiantes. Nesse longo processo de concepção, tive de abrir mão do meu arsenal de conhecimentos para sair da zona de conforto e criar algo novo. Tive de esquecer o resultado para mergulhar de cabeça no perigo, precisei sentir o desequilíbrio e o risco de cair. Isso é muito desagradável e todo o processo de construção foi uma aflição. Mas foi necessário também viver. A gente só voa se aceita o risco de cair. É a fé no salto que me faz chegar ao outro lado”, revela.
Toda ansiedade foi legítima. Beth Goulart teve de sobrepor diversos obstáculos até chegar o momento da consagração nos palcos e receber os principais prêmios no Brasil, incluindo o Shell. O primeiro e mais alto foi a não aprovação da família do escritor Fernando Sabino. Inicialmente Beth quis colocar em cena a troca de correspondências entre Sabino e Lispector, publicada em “Cartas perto do coração.” “Eu queria mostrar o ser humano por trás do autor, mostrar detalhes da vida desses criadores (...) Fiquei numa situação complicada, mas não tinha como retroceder. Já estava envolvida pela Clarice”, diz.
Paulo Gurgel Valente, filho de Clarice Lispector, foi um dos primeiros a assistir a um ensaio, ainda na fase inicial. Não havia cenário e tampouco figurino. “Claro que eu também fiquei nervosíssima.  Ele viu muito no início, mas eu precisava saber se estava tudo em ordem para, se fosse o caso, ter tempo de modificar. Ele ficou super emocionado, tanto que não conseguiu falar muito ao final. Depois me escreveu um e-mail com coisas incríveis. Disse que tem certas frases que são muito fortes e eu tinha de dar um tempo entre uma e outra pra que elas tivessem eco. Filho tem suas sensibilidade. Eu vi que ele tinha toda razão e comecei a trabalhar melhor o silêncio.”


“Tive de esquecer o resultado para mergulhar de cabeça no perigo, precisei sentir o desequilíbrio e o risco de cair. Mas foi necessário também viver. A gente só voa se aceita o risco de cair. É a fé no salto que me faz chegar ao outro lado”

Intimidade entre mulheres

É o terceiro espetáculo de Beth Goulart como criadora, uma cobaia de si mesma. “A linguagem surgiu muito do meu fazer teatral. É como a palavra da Clarice que é só dela. E eu tive a sorte de tê-la junto comigo. Ela me ampara, me sustenta, me dá lastro. O espetáculo é uma declaração de amor.”
A atriz tinha 13 anos quando leu o livro inaugural de Clarice, “Perto do coração selvagem”, pela primeira vez. No livro, Joana, a protagonista, também é uma jovem e houve identificação imediata. Demorou muito para o espetáculo nascer. Muito até que chegasse o entendimento para transformar a solitária experiência da literatura na arte coletiva do teatro, de juntar muitos num só momento de epifania. Levou realmente tempo. Na verdade, uma vida inteira.
“Clarice me acompanhou durante toda a minha vida. Li muitas de suas obras e minha admiração só aumentou. Virei mulher e percebi que as palavra dela tem uma importância em cada fase. Aliás, a cada nova leitura se apreende algo.”
Fazer uma personagem real é mais desafiador, mas Beth vive Clarice e outras quatro. Foi por isso que no processo de visagismo abriu mão de uma maquiagem que a deixava ainda mais parecida com a escritora. E ao invés de aproximar outras características, o melhor foi ter distanciamento físico. As sobrancelhas, ambas finas, mas uma reta e outra arqueada, foram neutralizadas.
“Eu não podia ser uma caricatura, nem a força estava na maquiagem. Existe todo um trabalho de gestos, de maneira de falar, do ritmo da voz, ritmo de andar em que a presença da Clarice fica muito forte. Cada personagem se expressa de uma forma. As idades são diferentes e as mudanças ficam claras para o público. Faz parte da linguagem do espetáculo essas transformações. Tanto que todas elas são feitas diante da platéia. O espaço cênico é muito aberto. Pedi ao cenógrafo que fizesse um vazio branco, queria dar a ideia de que aquele espaço poderia ser preenchido pelas palavras e pelos gestos, pela luz, como se fosse uma tela em branco a ser pintada ou uma folha a ser escrita. Essa neutralidade tem relação com uma essencialidade de linguagem teatral que eu busco nos meus trabalhos e que existe nas palavras de Clarice. O espetáculo é muito sensorial e eu proponho que as pessoas sintam a Clarice mais que analisem ela.”


A despeito da escapatória planejada para respeitar o que é particular de uma figura pública, há vários momentos que mostram as intimidades de Clarice Lispector. Num divã colocado no palco ela passa por uma das sessões de anos de psicanálise. E é quando reverberam muitas palavras e outros inúmeros vazios da mulher lúcida em excesso e de temperamento reconhecidamente impulsivo.
Depois de uma momento de epifania - ou “instante já” no modo clariciano de dizer -  no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, o espetáculo cresce. É a partir da abertura de olhares de uma dona de casa até então limitada a cuidar do marido e dos filhos que as personagens enxergam novas possibilidades. Elas invariavelmente tem opiniões fortes, mas a partir do surgimento de um objeto desconcertante, começam a pesar diferente, se perdem e terminam por encontrar novas formas de entendimento do mundo. Do seu infinito particular e do que há ao redor.
Beth, que se interessa por outras mulheres e já começou a estudar pioneiras em diversas áreas como Dulcina Moraes e Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, mãe do samba, se questiona em uma das cenas, num tom aberto: “O que seria do meu corpo sem o aviso da fome? Que seria de mim sem Deus!”
É assim que, sem titubear, diz sobre o que foi o maior aprendizado dessa trajetória: ter mais humanidade.

Fotos: Ramón Vasconcelos
*Matéria publicada na revista LivingFor.

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