As cortinas estão abertas, mas é como se abrissem e fechassem. Beth
Goulart revela e suprime nuances de Clarice Lispector. Também se mostra no
placo e se esconde para que outras surjam. É como se fosse uma brincadeira
infantil, jogo que a atriz defende acontecer desde a idade mais tenra: como a
leitura de pai para filho, a apresentação do mundo dos livros.
Numa sociedade de forte cultura
de criação de mitos, Beth Goulart passou por um longo processo de angústia até
colocar em cena uma das mulheres que mais admira. Foram exatos dois anos de
buscas, leituras de teses e análises de entrevistas e os mais diversos
materiais até concluir a feitura do espetáculo “Simplesmente eu, Clarice
Lispector”.
Nele há muitas sutilezas, pouca
desconstrução. São subterfúgios para não expor a vida sobre a obra, maior
legado da escritora nascida na Ucrânia e criada nos arredores de Recife e do
Rio de Janeiro. No teatro não são contadas passagens marcantes da vida de
Clarice como o incêndio provocado por um cigarro aceso durante a madrugada e
que, dormido entre os dedos, terminou por cair sobre o colchão.
O episódio de 14 de setembro de
1966 que a deixou três dias internada sob risco iminente de morte e mais dois
meses hospitalizada, com inúmeras queimaduras pelo corpo, profundas cicatrizes
na alma e por pouco não lhe amputou a mão direita, não é explícito, apesar de
Beth deixar a mão retraída ao admitir essa “persona”, como costuma dizer.
“Eu falo dos momentos mais
difíceis com muita delicadeza ou quase não falo: eu mostro. Costumo dizer que
quem conhece a Clarice, reconhece. Quem não a conhece, passa a conhecer. Meu
interesse nunca foi contar a história de uma forma linear e biográfica. Dou
fragmentos, pistas sobre a vida e a obra dela para que cada um faça seu encaixe.”
Os argumentos de Beth encontram
palavras de outro artista. As do bailarino Kazuo Ohno, figura máxima da
dança-teatro expressionista conhecida como butô. O mestre desse estilo surgido na
vanguarda japonesa dos anos de 1950, como resposta ao terror da bomba de
Hiroshima – que começou a dançar tardiamente, aos 43 anos, e fez isso inclusive
sobre uma cadeira de rodas – dizia que o artista não pode dar mais de 70%. O
resto quem completa é cada um.
Ela, também experimentada nos
palcos, complementa: “A arte não se explica, mas faz sentir e propõe questões
para que você tire suas conclusões. E isso ficou claro quando comecei a assumir
minha dor. Quanto mais pessoal se é, mais universal se torna. O pesar do ser
humano é único, assim como a solidão e as grandes sensações. Eu só pude
entender a solidão da Clarice quando chequei a minha solidão, minha angústia
criativa, meu estado de graça e a personagem terminou um híbrido de Beth e
Clarice.”
Essa e outras análises são fruto
do único auxílio que Beth Goulart teve durante a concepção do espetáculo – todo
o restante ela assumiu sozinha, do roteiro até a direção. O ator e diretor de
teatro Amir Haddad funcionou como supervisor, lançando um olhar em cima do da
atriz e propondo questões para ressaltar a consciência de Beth sobre o que
estava sendo criado.
Haddad a convenceu de que aquela
realização não era um depoimento simplesmente de Clarice, já que Beth se
revelava tanto quanto a escritora. Para uma falar da dor e da solidão da outra,
precisava colocar a sua própria, tornar o espetáculo um ser vivo, mais humano.
A essa observação e diferentes de pessoas que privaram da intimidade de Clarice
Lispector e apresentaram mais vestígios, hoje se deve a existência, em cena, de
uma pessoa “independente e que comanda”. É através dela que Beth consegue
improvisar de Clarice no palco, se preciso for, e até durante a entrevista.
“Isso é possível pela intimidade
que eu tenho com a obra de Clarice, mas, antes de chegar a essa persona, pisei
no terreno do desconhecido e passei por momentos muito angustiantes. Nesse
longo processo de concepção, tive de abrir mão do meu arsenal de conhecimentos
para sair da zona de conforto e criar algo novo. Tive de esquecer o resultado
para mergulhar de cabeça no perigo, precisei sentir o desequilíbrio e o risco
de cair. Isso é muito desagradável e todo o processo de construção foi uma
aflição. Mas foi necessário também viver. A gente só voa se aceita o risco de
cair. É a fé no salto que me faz chegar ao outro lado”, revela.
Toda ansiedade foi legítima. Beth
Goulart teve de sobrepor diversos obstáculos até chegar o momento da
consagração nos palcos e receber os principais prêmios no Brasil, incluindo o
Shell. O primeiro e mais alto foi a não aprovação da família do escritor
Fernando Sabino. Inicialmente Beth quis colocar em cena a troca de
correspondências entre Sabino e Lispector, publicada em “Cartas perto do
coração.” “Eu queria mostrar o ser humano por trás do autor, mostrar detalhes
da vida desses criadores (...) Fiquei numa situação complicada, mas não tinha
como retroceder. Já estava envolvida pela Clarice”, diz.
Paulo Gurgel Valente, filho de Clarice Lispector, foi um dos primeiros a assistir a um ensaio,
ainda na fase inicial. Não havia cenário e tampouco figurino. “Claro que eu
também fiquei nervosíssima. Ele viu
muito no início, mas eu precisava saber se estava tudo em ordem para, se fosse
o caso, ter tempo de modificar. Ele ficou super emocionado, tanto que não
conseguiu falar muito ao final. Depois me escreveu um e-mail com coisas
incríveis. Disse que tem certas frases que são muito fortes e eu tinha de dar
um tempo entre uma e outra pra que elas tivessem eco. Filho tem suas
sensibilidade. Eu vi que ele tinha toda razão e comecei a trabalhar melhor o
silêncio.”
“Tive de esquecer o resultado para mergulhar de cabeça no perigo,
precisei sentir o desequilíbrio e o risco de cair. Mas foi necessário também
viver. A gente só voa se aceita o risco de cair. É a fé no salto que me faz
chegar ao outro lado”
Intimidade entre mulheres
É o terceiro espetáculo de Beth
Goulart como criadora, uma cobaia de si mesma. “A linguagem surgiu muito do meu
fazer teatral. É como a palavra da Clarice que é só dela. E eu tive a sorte de
tê-la junto comigo. Ela me ampara, me sustenta, me dá lastro. O espetáculo é
uma declaração de amor.”
A atriz tinha 13 anos quando leu
o livro inaugural de Clarice, “Perto do coração selvagem”, pela primeira vez.
No livro, Joana, a protagonista, também é uma jovem e houve identificação
imediata. Demorou muito para o espetáculo nascer. Muito até que chegasse o
entendimento para transformar a solitária experiência da literatura na arte
coletiva do teatro, de juntar muitos num só momento de epifania. Levou
realmente tempo. Na verdade, uma vida inteira.
“Clarice me acompanhou durante
toda a minha vida. Li muitas de suas obras e minha admiração só aumentou. Virei
mulher e percebi que as palavra dela tem uma importância em cada fase. Aliás, a
cada nova leitura se apreende algo.”
Fazer uma personagem real é mais
desafiador, mas Beth vive Clarice e outras quatro. Foi por isso que no processo
de visagismo abriu mão de uma maquiagem que a deixava ainda mais parecida com a
escritora. E ao invés de aproximar outras características, o melhor foi ter
distanciamento físico. As sobrancelhas, ambas finas, mas uma reta e outra
arqueada, foram neutralizadas.
“Eu não podia ser uma caricatura,
nem a força estava na maquiagem. Existe todo um trabalho de gestos, de maneira
de falar, do ritmo da voz, ritmo de andar em que a presença da Clarice fica
muito forte. Cada personagem se expressa de uma forma. As idades são diferentes
e as mudanças ficam claras para o público. Faz parte da linguagem do espetáculo
essas transformações. Tanto que todas elas são feitas diante da platéia. O
espaço cênico é muito aberto. Pedi ao cenógrafo que fizesse um vazio branco,
queria dar a ideia de que aquele espaço poderia ser preenchido pelas palavras e
pelos gestos, pela luz, como se fosse uma tela em branco a ser pintada ou uma
folha a ser escrita. Essa neutralidade tem relação com uma essencialidade de
linguagem teatral que eu busco nos meus trabalhos e que existe nas palavras de
Clarice. O espetáculo é muito sensorial e eu proponho que as pessoas sintam a
Clarice mais que analisem ela.”
A despeito da escapatória
planejada para respeitar o que é particular de uma figura pública, há vários
momentos que mostram as intimidades de Clarice Lispector. Num divã colocado no
palco ela passa por uma das sessões de anos de psicanálise. E é quando
reverberam muitas palavras e outros inúmeros vazios da mulher lúcida em excesso
e de temperamento reconhecidamente impulsivo.
Depois de uma momento de epifania
- ou “instante já” no modo clariciano de dizer - no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, o
espetáculo cresce. É a partir da abertura de olhares de uma dona de casa até
então limitada a cuidar do marido e dos filhos que as personagens enxergam
novas possibilidades. Elas invariavelmente tem opiniões fortes, mas a partir do
surgimento de um objeto desconcertante, começam a pesar diferente, se perdem e
terminam por encontrar novas formas de entendimento do mundo. Do seu infinito
particular e do que há ao redor.
Beth, que se interessa por outras
mulheres e já começou a estudar pioneiras em diversas áreas como Dulcina Moraes
e Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, mãe do samba, se questiona em uma
das cenas, num tom aberto: “O que seria do meu corpo sem o aviso da fome? Que
seria de mim sem Deus!”
É assim que, sem titubear, diz
sobre o que foi o maior aprendizado dessa trajetória: ter mais humanidade.
Fotos: Ramón Vasconcelos
*Matéria publicada na revista LivingFor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário