Na terceira gaveta de um armário que tenho no escritório do meu apartamento está guardada uma caixa vermelha e com um elástico branco que guarda por sua vez imagens antigas. Por causa do meu fascínio pela fotografia, muitas delas estão lá porque julgo que são esteticamente interessantes. Desconheço até a razão de algumas terem sido feitas. Outras são minhas. Fotos de infância principalmente.
Quando eu não sei o que está por vir, sento no chão, abro a tampa e me passa um filme. É puro hábito. Tão recorrente que já sei a sequência em que estão dispostas e seria capaz de apontar os detalhes mesmo se estivera de olhos vendados. No gesto repetido de hoje cedo, percebi a força do acaso. É uma fase de mudança e eu faço outra análise.
Veraneávamos, eu e minha família, em uma casa que tinha a árvore mais exuberante que eu já vi. Até hoje não sei bem do que se trata, mas tem folhas como as de um cajueiro, só que mais resistentes, e caule e galhos como os de um pinheiro, só que são tortos. É uma surpresa. Uma das maiores obras da natureza que eu via com esquisitice.
A árvore nascia no terreno lá de casa, mas só dava sombra pra o lado do vizinho. Ele pedia insistentemente pra que nunca cortasse e seguia fazendo churrascos sob. Eu era um menino franzino naquele verão do início dos anos 1990. De tão delgado acho até que ela nem se incomodava com minhas escaladas e o lar que construí ali. A casa da árvore. Que não tinha teto nem paredes e era dividida com dezenas de passarinhos.
Havia uma diagonal feita por sobre o muro onde eu me abrigava da chuva. Isso quando chovia de dia. Só tinha permissão de passar as manhãs e tardes naquele lugar. E foi numa dessa que eu arranjei de pegar os óculos de sol de alguém. Eram negros na armação de acetato e de lentes bem escuras. Grandes pra mim, mas com um cordão que prendia no pescoço em caso de qualquer escapadela.
A foto quem tirou foi minha mãe. Eu estava encostado numa parede. Com os cabelos aloirados do sol, a pele queimada, uma bermuda caqui, camiseta branca e os tais óculos. Ao lado havia um vaso de planta da minha altura. Hoje a impressão amarelada quase não deixa ver as cores que estavam lá. E a textura da maresia. Mas agora o olfato emocional me transporta ao período de pré-adolescente pelo cheiro da independência.
Dos ares de emancipação tenho mais referências dentro da caixa. Por exemplo, outra 15 x 21. Essa com verniz e marcas de digitais. Fica junto de outra que me revela menor que uma boneca que ficava ao lado da cama da minha irmã e eu roçando nela sem roupa. Está na ala dos gestos que já me envergonharam, embora hoje ache graça.
A foto foi tirada sem que soubesse. Até meio tremida ficou. Eu usava uma camiseta de tricô num tom de pastel. Estava numa festinha com os amigos da minha rua. Na certa, arquitetando uma travessura. Remete a época em que eu comecei a saber o que era guardar segredo. Tinha um pacto com um primo da minha idade, Raphael. Nós éramos cúmplices de um esquema pesado. Era crime mesmo. Dos poucos que cometi.
Na praça da rua de cima havia uma centena de eucaliptos altos e uma banca toda pintada de branco. Minimalista que chegava a parecer ingênua. Ao redor, o frescor das plantas. Dentro, pirulitos, jornais, álbuns e figurinhas e revistas.
Foi numa prateleira escondida que encontramos exemplares proibidos para menores. Entramos e saímos de lá várias vezes sem nem pensar que o velho da banca já tinha dado conta do que pretendíamos. A revista era pornográfica mesmo. A primeira que compramos tinha uma negra farta de tudo. E no interior, ela mesma, possuídas por três homens, em todas as entradas.
Em poucas semanas já tínhamos muitas delas. Todas sujas. Fotografias arruinadas com balões e falas censuradas em qualquer local público. Pelo grande volume, mudamos de esconderijo – sim, porque elas precisavam ficar em um local secreto. Achamos de colocar tudo embaixo do sofá da sala da casa dos meus pais. Era perfeito. Até o dia da faxina quando afastaram ele.
Meu pai me apanhou na escola e não deu nenhuma palavra. Na certa já sabia, mas reparou nos meus últimos minutos sem culpa cristã. Antes do almoço minha mãe me puxou no canto e me esbofeteou com gritos. Ela estava certa. E tive de entregar meu primo e agüentar o sarro dos amigos da rua sobre minha mãe ter ido falar com a esposa do velho da banca.
Depois veio uma nova fase. Estava pronto para entrar na universidade, saindo da escola. Foi lá que encontrei uma das minhas maiores aquisições: Gláucia. Eu usava dos mais variados subterfúgios para não ficar com ela no início. Gostava daquela idéia de ser conquistado e assim fui levando até que a vontade já era maior que meu ego. Foi uma história bonita de quase cinco anos.
Em Caicó, numa festa de Sant’Ana a gente levou uma surra de muriçoca. A foto foi feita a uma distância razoável pra não mostrar as potocas na pele como algumas das marcas daquela noite. Na impressão guardada, apenas eu, ela e meu primeiro carro, que tinha na mala um adesivo do gato Félix. A máquina ainda era de filme de rolo e eu nem sabia que existia photoshop. Pra enfeitar, pedi pra fosse revelada com margens brancas.
Quando eu saí dos bancos acadêmicos as imagens se tornaram um objeto de trabalho. São muitas as que vejo diariamente, as que comento, as que ignoro. Voltei a montar as pessoais em álbuns de papel e cantoneiras. Tenho planos de escrever nos cantos das páginas, só que venho protelando. Quiçá pela falta de tempo nesse período, ou porque eu não preciso verbalizar o que sei e é só meu.
sexta-feira, 4 de julho de 2008
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Um comentário:
=)
agora admite que me deu muito trabalho, né?
bjo!
te amo!
glaucia
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