quarta-feira, 30 de julho de 2008

A gente nunca esquece

Para Neila
Na minha infância bicicleta era uma geringonça formada por uma esquadria de metal, duas rodas e um guidão. Seria prudente que também tivesse freio pra minimizar os tombos, mas nem sempre havia. Na dos meninos não podia faltar bagageiro. E nas das meninas uma cesta na frente – que eu poucas vezes vi sendo usada, mas todas faziam questão. Desde cedo são voluntariosas. Vai entender as mulheres!
Eu aprendi a ter equilíbrio na vida e sobre duas rodas um pouco tarde. Já tinha uns dez anos quando encarei pra valer um passeio. No pneu de trás da minha bike, duas rodinhas menores, presas por parafusos e que me ajudavam a não cair. Tinham uma leve angulação e não tocavam a calçada de frente de casa – local dos meus treinos - todo o tempo. Assim, eu sentia quando estava usando-as e as minhas melhoras.
Uma semana dali, tirei a primeira. Estava mais confiante. Qualquer problema era só jogar o peso do meu corpo para o lado direito, o que ainda tinha suporte. Quando decidi ficar sem as duas sonhava em ter uma família margarina, com um pai que corresse ao meu lado e não me deixasse estropiar no chão. Mas eu nasci e o meu já beirava os 40. Seria muito àquela altura exigir isso. Nunca fui uma criança chantagista, que fique claro. Só aprendi essa artimanha depois.
Na minha infância bicicleta era uma das poucas brincadeiras. Nunca achei graça em ficar sujo, correr e rolar na grama com os outros pequenos. Tinha uma forma particular de me divertir e de quando em vez preferia ficar ao lado dos meus pais em rodas de adultos. Ao menos as histórias eram interessantes. Uma delas conta que meu pai remava na época em que morou no Rio. É engraçado. Ele nunca foi afeito a essas extravagâncias e da última que me recordo, com meu irmão mais novo, caiu errado, na quina da piscina no momento em que tentava acertar uma bola. Tal fato lhe rendeu uma cirurgia no ombro direito e uma cicatriz bem avantajada.
Sobre marcas eu também tenho entendimento. Já tendo a manha das pedaladas, apostava corrida com um primo da mesma idade pelas ruas do bairro. Perto de um supermercado era o nosso ponto favorito. A avenida era asfaltada e tinha uma ladeira de bar frio na barriga. Foi nela que uma vez parti na frente e quando cheguei pela metade, olhei pra trás pra ver se ele me acompanhava e trombei com um carro que estava estacionado. Foram alguns metros pelo ar e outros pela pista. E fui obrigado a ir à escola mesmo com o corpo e o rosto arranhados.
Ela era roxa e com a cela e uns adesivos em amarelo flúor. Ficou rota também e foi guardada por um tempo na garagem. Período que era pra ser curto, mas se prolongou até hoje. Minha bicicleta sumiu sem que ninguém visse. E eu entrei em desespero porque nem com o vigia da rua, que estava sempre dormindo, eu pude contar para ter qualquer informação. Na minha infância esse furto foi uma das primeiras desesperanças que conheci.
Uma amiga, entendendo que era seu melhor momento profissional, deixou filhas, cachorro e tudo mais que tem por uma temporada. Saiu da cidade para trabalhar. Fizemos, num bar, uma reunião com os mais chegados para a despedida e terminei por convidá-la e mais um par de pessoas pra um almoço no dia seguinte.
Ela não sabia bem, mas a idéia era fazer a partilha de suas coisas, ou de forma mais simpática, ajudar a cuidar de tudo durante a ausência de três meses. Um amigo que já deveria ter saído da casa da mãe ficou com o apartamento e responsabilidade de pagar as contas provenientes de seu uso. Outra que mora num espaço reduzido pegou pra si a incumbência de determinar a agenda festiva na nova locação. E eu fiquei com a bike. Profissional, cor de vinho, com amortecedores, umas tantas marchas e mais modernidades que nem sei usar.
Havia mais de dez anos desde a última vez que montara em uma bicicleta. Essa é uma digressão. Do verbo digressionar. Das conjugações da saudade. E é parte de uma retomada.

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