Era pontilhada. Como reticências. Não a via por sobre a sua cama, mas sabia que estava ali. Uma linha ameaçadora e que se tivesse dedos os apontaria para o seu rosto indagando sobre tudo o que deixou de explicar dentro dos últimos anos.
Apertou seu pulso com força e puxou numa diagonal que de tão certeira rasgou a blusa estampada de cetim ao lado da costura que levava ao braço direito e terminou por arrastá-la para o chão do asfalto quente. Com a pele do rosto rasgada e o ouvido no solo se assustou com o barulho tardio da buzina, uma freada brusca e o choque entre os dois veículos.
Era uma manhã de sol forte. Liara atravessava a rua distraída. Nas linhas aparentemente seguras de uma faixa de pedestre. Ouvia better together, do Jack Johnson, no seu Ipod. Música que lhe colocava em transe e concedia o direito ao sorriso sem disfarces, que capturava as gotas de suor que escorriam de suas têmporas.
Depois da queda ficou inconsciente por dois ou três minutos. Impacto daquela sensação de ser salva por um estranho, que sequer lhe esperara acordar. Queria agradecer pela mão amiga.
Depois do choque de realidade que foi ver a multidão ao seu redor - gente que estava ali por curiosidade e quem sabe até vibrasse contra sua vida só pelo prazer de ver representada diante dos olhos a violência das ruas a que todos estão susceptíveis – teve paragens. Começava a observar os avisos. Os horizontais, dos agravos do mar adiante. Os verticais e os outros que estão ao alcance dos olhos, mas por vezes são ignorados.
Já anoitecera e o gato ronronava por sobre o braço do sofá quando a porta se abriu. Ele chegou com sua maleta preta, os sapatos ainda empoeirados de um barro avermelhado e um apetite que nem de longe parecia com o dela. Enquanto lhe corroia as vísceras um desejo libidinoso, a ele só o estômago preocupava.
Abriu um tinto meio seco. Duas taças. Sugeriu um brinde e ouviu o tilintar, mas nenhum olhar foi lançado em sua direção. Ainda assim, deu o primeiro trago. Seguiu bebendo numa tentativa de conseguir ganhar coragem e ultrapassar a linha que os separava.
Servidos os pratos, sugeriu uma música. Ele aceitou, mas nem tantos acordes poderiam fazê-lo esboçar o que o desejo de Liara pedia. O que existia entre os dois era metade tédio, pelo simples contentamento de ter um abrigo seguro. E na outra metade havia preguiça.
A cama estava vazia quando ela acordou no horário de sempre. Não precisava de despertador. O vento frio batendo do lado direito do seu corpo já era um sinal de que ninguém estava mais ao lado. Fora sem sequer lhe dar um beijo de despedida. Era a rotina do trabalho, da falta de urgência, do conformismo.
Estava do lado certo do quadrado. Na parte que ainda lhe cabia. Sem invadir os espaços foi deixando que a inércia mudasse sua vontade de poder retomar a injeção motora daquela relação. Seu inconsciente refletia o discurso do outro.
Desenganada da vida saiu de casa com uma roupa leve. Foi correr. Pelo esforço, voltava a ter o peito acelerado e o corpo suando. Nas linhas daquela pista seu olhar cruzou com um que tinha a mesma mensagem. E talvez tenha se apaixonado, mas não foi suficientemente forte para alimentar aquela cria.
Em dez dias estavam num mirante, despedindo-se. E pela primeira vez, nos olhos dele viu lágrimas. Ficou inerte, sem coragem de tocar. Era um sentimento vultoso que beirava a margem do admissível, quase se encostando à loucura. Foi por ele que perdeu o controle e se aventurou nos dias em que combinaram de dormir juntos. Por ele também que parou para observar o vulcão, sem sentir medo ou tentar mais fugir.
Mas na paixão não existe segurança. O que sobra é muita expectativa. E dias como os dois separados podem significar o amadurecimento ou simplesmente romper com tudo. Se não é amor a distância se torna um impedimento.
Quando abriu a porta as coisas estavam no mesmo lugar. Mais de um mês havia se passado e tudo o que tinha sido conquistado até ali, permanecia. Liara chorou. Não porque estava sozinha e sentia medo de ter feito as escolhas erradas e logo teria de arcar com a agonia da solidão. Mas era extremamente desconfortável viver dois lutos de uma só vez.
Com as janelas abertas foi inundada por uma tempestade que encobria quase todo o trânsito. Olhou para baixo e se viu no meio da pista, no meio da chuva. Se estivesse novamente ali, mesmo sem conseguir controlar seus impulsos, teria usado o freio e esperado o mal tempo passar antes de seguir seu rumo. No vai e vem frenético do mundo o maior risco ainda é ser atropelado.
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Um comentário:
Olá amigo Cristiano! Estou no seu e você está no meu...
Obrigado pela visita.
Abraço forte.
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