Coque no cabelo, vestido de poá
cobrindo os braços e na altura dos joelhos. Poucas tatuagens ficaram aparentes.
A tez parecia mais natural que de costume. Maquiagem discreta, olho levemente
delineado e a boca de um alaranjado quase rubro. A cor nos lábios era o único
rastro da Fernanda Young que havia visto em programas de televisão.
Fui certo de ter um encontro com
uma mulher que exalava sensualidade de contornos fetichistas, marcada por
cintura apertada em um corselete. Ao ver que não, questionei de pronto,
arrancando um sorriso que fez aparecer o piercing que sustenta no freno da
boca. A argola surgiu sobre os dentes quando ela falou: “acho que engordei um
pouco”. Eu estava preparado para uma rapidinha e depois vê-la posar para fotos.
Ela despreocupada do tempo passar e servida de sushi e cerveja no camarim.
Aos 42 anos, Fernanda Young pode
ser lasciva ou não. Partir para a gargalhada, ironia ou incontestável
irritação. Pode escolher, enfim. E escolhe a personagem que lhe deixa
estereotipada sem transparecer qualquer rusga. “Eu me preocupo muito com a
apresentação, com a estética que eu imprimo no meu trabalho. Na hora de
aparecer para o meu público, nos programas que vou, gosto de estar montada. Mas
na minha intimidade eu sou muito simples.”
Um parênteses para dizer que essa
entrevista aconteceu num período de agenda profissional intensa para Fernanda.
Com os roteiros de “Como aproveitar o fim do mundo” indo ao ar pela Rede Globo
e percorrendo o país para divulgar seu segundo livro pela editora Rocco, “A
louca debaixo dos bancos”, ela reclama da falta de tempo para algumas delicadezas,
como fazer as unhas. “Não repare muito, mas realmente não deu pra fazer antes
de vir.”
Mãe de quatro filhos, casada com
o também escritor e roteirista, Alexandre Machado, Fernanda desbravou nos idos
dos anos 1994 um novo e promissor mercado de trabalho: escrever roteiros para
televisão, numa época em que só havia autores de novela. E ela fazia humor. Um
humor sem medo de ser picante, sem tantos pudores, sempre com temáticas
sexuais, sempre vistas com liberdade pelo universo feminino. Embora pareça, ela
desconversa sobre sua aparente obsessão artística.
“O que eu acho é que nós
brasileiros temos uma grande sorte. Nós temos uma inteligência calcada na
liberdade que é incrível. A gente pode ser muito risível através de uma
sexualidade popular. Enfim, eu tenho minhas opiniões quanto a alguns hábitos
musicais, ritmos e como se utiliza a liberdade, mas mesmo essas coisas que a
mim me parecem risíveis, eu reconheço que são uma comunicação de liberdade.
Acho que somos uma país dado a inteligência porque somos livres. Não tenho
muitos problemas, nunca tive. Sei que a liberdade requer responsabilidade”,
dispara.
Fernanda Young tem um estilo
escorreito – assim mesmo se autoavalia -, que privilegia o fluxo do raciocínio,
sem tantas digressões. Talvez algumas bem pontuadas haja em certos momentos.
Por isso mesmo atrai um público jovem e suas naturais inquietações sobre o
sexo, drogas e outras fugas.
“Os jovens perguntam muito sobre
drogas e eu sou muito honesta em dizer que não as uso e, claro, já usei
algumas. Não uso há muitos anos, não faz parte da minha vida manipular a
realidade dessa forma inútil. Cigarro é outro assunto que eu gosto de falar
porque eu fumei durante 21 anos e de fato foi a coisa estúpida que eu usei por
mais tempo, de todas as bobagens cometidas. As resposta pra eles é muito menos
tímida que saber que meus filhos vão começar a saber de realidades que ainda
não questionam. Mas eu devo ser honesta com eles também.”
Fernanda é letrada na escola da
vida. Interrompeu os estudos no ensino fundamental, concluiu o médio por meio
de supletivo e chegou a estudar letras, jornalismo e rádio e televisão, mesmo
sem terminar nenhum dos três cursos. Escrevendo parece mais verborrágica que
com as palavras ditas, embora fale com a fluidez de quem não precisa procurar termos
interessantes nos arcabouços da memória.
“Nunca me senti tolhida na minha
expressão artística. Tem intenções, é certo. A Globo quer fazer sucesso e quer
algo que muitas pessoas entendam, sem popularizar, sem paternalismo, sem usar
de métodos que eu não considero razoáveis dentro da minha estética de humor,
mas há hipóteses. Nunca é algo repressivo”, conta.
A atividade literária é ainda
mais livre. “Eu tenho total liberdade criativa e ninguém pode fazer o
contrário. Em televisão eu tenho de me render a algumas regras e eu tenho de me
concentrar no público. Mas em literatura ninguém pode medir absolutamente nada
porque o que eu preciso é escrever. Publicar é uma boa e uma grande sorte, sou
e me sinto agraciada de ter o meu verbo exposto, mas não é o primordial. O
primeiro é apenas sobreviver.”
Na sua atual editora, a Rocco, a
terceira da carreira, depois de Objetiva e Ediouro, uma grata surpresa: todos
os outros dez títulos, incluindo “O Pau”, de 2009, estão sendo reeditados. “É
muito bom porque leitores atuais, que em 1996 não tinham idade para ler meus
livros, agora podem ter essa oportunidade.”
Para dar
Fernanda quer dar o que recebe. A
mesma oportunidade de espaço. Essa mulher que antes de ver seus romances
publicados tira fotocópias dos textos para “coisificar” – termo usado numa
alusão ao poeta Manoel de Barros -, alegando que “ver de cima traz
alivio”, faz planos de criar um selo com
a Rocco ou com uma editora mais singela para publicar a palavra de autores não
apenas de literatura, mas de artes plásticas e até de grupos de terapias. De
gente que, como ela diz, “se comunica para
sobreviver a uma confusão emocional”.
“Tenho tido acesso a alguns
desses grupos que são bastante curiosos na expressão do verbo e da cultura. E
são pessoas que se expressam por necessidade de sobrevivência ao afogamento”,
diz, lembrando o poema “Emergência”, de Mário Quintana:
“Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.”
Generosidade de uma mulher em
dúvida se gosta mais de entrevistar ou ser entrevistada, mas que se posta bem
nas duas situações. “Gosto muito de entrevistar, mas não posso entrevistar todo
mundo porque não sou jornalista. Então, se a figura não me interessa, fico
empacada. Mas eu me interesso por muito tipo de gente e não precisa ser famoso.
Só precisa ser honesto ou maluco. Eu não gosto de quem simula tipos. Sou
bastante curiosa. E gosto de dar entrevista, contanto que elas sejam boas, mas
eu sou muito profissional a respeito disso também.”
É por essa leve abertura que eu,
modesto datilógrafo, ouso a pergunta que nunca fiz: foi bom pra você?
Fotos: Ramón Vasconcelos
*Matéria publicada tempos atrás, na edição #7 da revista LivingFor. Texto e fotos contém direitos autorais.
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