Muitos ensaiaram e nenhum
conseguiu explicar. Afinal, o que é ser normal? De todos esses exames, só uma
certeza fica: “a normalidade não provém de nenhuma definição racional, mas de
uma certa relação entre o indivíduo julgado e o grupo que se autoriza a
julgar.” A conclusão do cientista francês Jaques Testar põe em xeque qualquer
nova tentativa de elucidar fatos e pessoas, antes de olhar friamente o que são e
seu julgador. Olhando Kiko Zambianchi
de perto, dá pra entender suas possíveis loucuras e seus feixes de
reinvindicações.
Kiko tira os tênis e saca o violão, sua arma há pelo menos três
décadas. É cantando que se expressa. Aliás, orgulha-se de fazer música até
hoje, apesar de ter lançado seu último álbum de inéditas mais de dez anos
atrás. Parece rejeitar se apavonar pelo sucesso, como o vivido nos idos dos
anos 1980, e ter satisfação em ver suas novas palavras em outras bocas. E elas
são muitas. Mais de 80 artistas já gravaram suas canções, como mais
recentemente Beto Lee, que, no ano passado, recebeu o Grammy Latino de melhor
disco de rock com “Celebração & Sacrifício”, que tem três faixas compostas
por Zambianchi.
Seria normal não querer pra si mais notoriedade e reconhecimento
profissional? Sigmund Freud poderia perguntar, assim como fez com outras
esquisitices antes de atestar que a intimidade do outro, que é diferente de
nós, causa estranhamento. Ou perguntaria Caetano Veloso, que assumiu em “Vaca
Profana” saber ser careta – ou forjar ser – e cantou uma das maiores verdades
sem explicação: “de perto ninguém é normal”. Simplesmente porque não se pode
ser.
Com a força da expressão de Caetano,
Kiko é direto: não vê outro nome surgir na música brasileira.
“Estamos vivendo de bizarrices, de música e gente bizarra, com pouca
inteligência. Para o país isso é horrível. Mas o Brasil tem essa tendência de
partir pra ‘bundalização’. O país sempre investe nosso dinheiro em bunda e a gente
termina fazendo folclore”, dispara.
Folclore, registre-se, é como ele
prefere chamar o que de forma politicamente correta seria um regionalismo, como
o forró nordestino, o axé baiano ou simplesmente o som de tecnobrega da
paraense Gaby Amarantos - a quem chama de Amarante, por simples desconhecimento
e desinteresse.
“Eu acho que esse negócio de
folclore é imposto pelos americanos. Eles querem
mais é que a gente fique com a banana na cabeça. Por que o chique tem de ser a
Lady Gaga ou os The Rolling Stones e a gente tem de colocar a bananinha na
cabeça? Não sei também o motivo de não fazerem só blues. Sei, sim. A gente gosta
de dar espaço pra eles e vamos continuar assim. Afinal, Legião Urbana vendendo
mais que Tina Turner nunca foi interessante pra gravadoras internacionais.
Bicho esquisito
Kiko Zambianchi não gosta apenas de rock, outro registro. Admira a
música de Seu Jorge, do Criolo e outros mais. “Só não pode ser pagode”, adverte. Além disso vive outra
situação que pode parecer punk: mora na mesma casa com a ex-mulher e a atual
esposa. Alega que elas são amigas e propuseram e pra ele foi melhor, por isso é
que aceitou a ‘economia’.
Na mesma casa, no Pacaembu, em São Paulo, cria dois cachorros e três
gatos. Um deles, alaranjado, está sendo ensinado a falar seu nome. Mia em duas
parte, como se pronunciasse ‘Kiko’. É motivo de orgulho e não raramente o
músico comprova essa excentricidade com um vídeo, gravado do seu tablet.
A câmera fotográfica também sempre é carregada. Depois da entrevista,
Zambianchi mostra alguns estudos ao mesmo tempo que se desmancha ao falar das
filhas Ana Júlia e Giovana, frutos da relação com Ana Claudia. Enquanto uma
toca e canta composições próprias, a outra, cineasta, registra em vídeo.
De espaço barulhento, aliás, ele parece ter cansado na época áurea do
rock brasileiro. Kiko, que já teve em casa ares ainda mais introspectivos, como
quando dividiu apartamento, em Perdizes, com o escritor Marcelo Rubens Paiva,
hoje prefere se apresentar em teatros a casas mais underground. “Não me
considero nem quero ser elite, mas diante das coisas horrorosas do nosso
mercado eu acabei virando um pouco. Termina que agora eu gosto mais de teatro
porque o pessoal vai pra ver o show, não é pra paquerar, nem pra beber. E se
fizer barulho, outros abrem a boca e pedem silêncio.”
“Eu acho que esse negócio de
folclore é imposto pelos americanos. Eles querem
mais é que a gente fique com a banana na cabeça.”
Há outra prova de que não precisa ser rock para agradar. Em meados dos
anos 2000 Kiko trabalhou com hip-hop e estava de malas prontas para morar
definitivamente em Nova York. A nova carreira musical estava dando certo – até
uma versão de “Deu a Loka” foi transformada em inglês, ganhou o título de
“Right Away” e terminou gravada pelo rapper norte-americano Lil Scrappy,
produzido por 50 Cent. O plano, porém, acabou frustrado depois de quatro anos
de parceria com o produtor David Aaron Shayman, conhecido como Disco D, que
morreu precocemente com então 27 anos.
“A gente se conheceu em São Paulo e logo começou a trabalhar junto.
Ele era um editor e na época pagava caro pra recortar as músicas dos outros,
pra fazer sampler. Aí eu comecei a fazer as levadas e o lance foi dando certo.
Mas o cara era bipolar. Deixou de tomar remédio, achou que estava bem e acabou
se matando.”
Era David quem abria as portas dos trabalhos nos Estados Unidos.
Zambianchi nem pensou em continuar o projeto. “Acho que aprendi um pouco dessa
parada, mas não vou continuar fazer isso fora, nem aqui. Acho que o pessoal não
iria entender, sou branquinho demais”, brinca.
O som bilíngue – que ganha mais espaço na cena musical contemporânea –
também está fora de questão. “Isso é falta de referência. Os tempos são muito
diferentes de décadas atrás. Quando alguém ia montar uma banda, podia olhar
pros lados. Atualmente quem quer fazer um trabalho mais elitizado precisa olhar
pra fora. Por aqui aparece um cara cantando “Para nossa alegria” e acaba tomando
o espaço de um artista que tem um disco bom.
Apesar disso, não apenas pedras rolaram nesse caminho. Algumas coisas progrediram.
Mesmo o momento sendo de intensa fiscalização para combater a insegurança
dentro das casas noturnas do país, por causa do trágico incêndio na boate Kiss,
de Santa Maria (RS), a estrutura dos espaços para shows se desenvolveu. “Do
jeito que as cidades cresceram, estão mais maquiadas e bem tratadas, as boates
melhoraram. Infelizmente ainda cuidam mais da estética do que do som. O carpete
é mais importante, mas temos espaços bons, confortáveis e seguros.”
A partir do próximo ano talvez em alguns deles esteja tocando um som
novo. Kiko Zambianchi tem um projeto: compor e convidar bandas e intérpretes a
emprestarem suas vozes. Voltando aos julgamentos, pense em como seria um time
com Luiza Possi, Dinho Ouro Preto, Seu Jorge, Pitty e o grupo Cachorro Grande.
Agora é esperar pra ver.
Fotos: Ramón Vasconcelos