sábado, 31 de maio de 2008

Ressalvas

Desejos em mim parecem ter vida longa, mesmo que nunca tenha desejado que seja assim. Uma profusão de desejos me amedronta. Por isso que às vezes preciso prostituir as palavras para expressar minhas infâmias.
É mais um dia em que a chuva invade a sacada do meu apartamento. Vejo incólume. A chuva alaga o chão, mancha os vidros e molha as plantas. Tem suas compensações. E, afinal, sempre quis ter uma sacada.
O cansaço do sol incomoda especialmente hoje. Se estivesse mais disposto poderia vencer esse mal tempo. Ao deitar, desejei que o amanhecer fosse claro e com forma de maresia. Receberia em sinal de glória tudo pronto. E com setas apontando o caminho.
Desafortunadamente o tempo é um Zenão. As águas têm mais força. Vencem até mesmo a aspereza das pedras. Só não derrotam o meu desejo. Quero hoje acreditar mais no poeta e em suas profusões. Que os dias são iguais e distintamente belos. Cada um é como é.
Meus desejos têm abundância na alma. E de alma eu só conheço a minha. Quando miro, deixo meus desejos serem percebidos. São sinais com os olhos e com a boca, num ato de mostrar os dentes, antes de morder a língua. Meus desejos são de um homem comum. Sem as pretensões da poesia. Vulgares.
Meus desejos alimentam outros guardados. Também da alma, mas que não revelo. Ressabiado. Tenho motivos. Quanto mais o tempo fecha fica difícil ver a paisagem ao longe. De perto, não sou bom observador. E ademais, sei que há gente que não é honesta com seus desejos, que sorri com falsidade.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Sobre escolhas

Ela é uma nau e eu um moinho. Nós dois precisamos de vento. Mas o que me faz girar a afasta de mim. Peço ao tempo que não seja desleal. Mesmo que esse gesto me custe o ócio.
Como moinho, temo ver o mar revolto. Embarcação tão vistosa não pode ficar à deriva. Suas velas não a deixam passar despercebida. Por isso um simples suspiro me faz indagar.
Amarrado a sua proa, noto que não está desapercebida. A precaução me aponta canhões, a ponto de colocar encurralado. Seria justificável ao analisar o rumo dessa empreitada: o descobrimento.
Eu, moinho, tenho o mesmo objetivo. Quero nessa busca encontrar o ponto mais alto e mais verde dessa terra. Ancorar a nave e ali fazer uma estação eólica.
Com ventos movendo minhas pás, produzirei mais energia para lhe ofertar. Pouparei seu desgaste de fazer longas jornadas. Serei companheiro.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Reflexos da chuva

Quando chove, a natureza dos bichos é se proteger. Outro dia, enquanto chovia, um imbuá descia pelo pano da cortina da minha sala. Seu preto destacava do tecido alvo. Movimentando aquelas dezenas de pernas, parecia estar apressado.
Por causa da chuva, as portas e janelas estavam fechadas. Ademais moro no décimo quinto andar e nem imagino como ele possa ter chegado até aqui. Mesmo sabendo que, quando chove é instintivo, os bichos precisam e quase sempre conseguem se proteger.
A chuva talvez tivesse destruído sua morada, que poderia ter sido construída habilidosamente em um vaso de planta generoso que tenho na varanda do apartamento. Sim, porque a chuva também faz estragos na terra. Cava buracos e transforma em poças de lama todas as casas de minhoca.
Talvez tivesse procurando ajuda de um ser semelhante que por ventura poderia viver em outro vasinho posto nessa minha selva cheia de paredes. Força de outro imbuá, que pudesse resgatar, quem sabe, seus familiares. O alagamento e a vida justificariam a pressa.
Senti-me pequeno demais para interferir no destino daquele imbuá, que fosse para colocá-lo no chão. Acho que ele caminhava nesse sentido. Um pouco afastado, torci por ele. Pra mim, chega a ter cheiro de poesia ser vizinho de uma família de imbuás.
Também na natureza a gente torce com ares de curiosidade. Fiquei olhando até que ele sumiu por detrás do sofá com jeito de montanha. E, na minha imaginação ele conseguiu encontrar animais solidários e salvou seus filhos e companheira.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

É dando que se recebe

Ela só foi notada quando sua mãe voltava de uma viagem que fez a Fortaleza e o carro em que vinha capotou umas boas vezes. Exames médicos que deveriam dizer apenas se nada havia sido quebrado, encontraram Gigi, protegida pelo airbag da mãe, então com apenas dois meses de gestação.
Condenações. Mas ela nem é casada! Vai perder toda a juventude! Inquietações. Quem vai sustentar essa criança? Será que o pai vai assumir? Como vai reagir seu irmão ciumento? Tantas perguntas que nem poderiam ser respondidas dentro dos poucos meses até ela nascer. A mim a notícia também pegou de surpresa. Era a prima da minha idade com quem eu mais tinha aproximação, que fazia dupla comigo nos concursos de dança inventados na garagem de casa aos doze.
O semestre passou muito rápido e logo Giovanna chegou com a pele morena de uma legítima cabocla, tão informal quanto à denominação do seu cabelo: sarará. Era um verão e meus pais viraram seus padrinhos. Mais um laço e motivo para ela estar sempre no meio de nós.
Seu crescimento é acompanhado por mim apenas nos finais de semana. Sábados ou domingos que sempre me surpreendem. Quando está na companhia da avó seus cachos são domados. Quando a mãe não tem ajuda, a arapuca torna-se indomável. Uma juba que lhe é peculiar. Traça um pouco de sua personalidade. Quiçá por causa dela seja o centro das atenções. Dócil com os seus e arisca com visitas alheias.
Fui um desses intrusos por quase um ano. Tempo em que me dedicara a levantá-la até a altura da minha cabeça, colocando-a com o tronco para baixo e dizendo: faça agora a posição da bailarina. Querendo que ela, antes de gritar, pusesse as pernas para o alto, e porque não, fizesse uma ponta.
Via em seu olhar. Gigi me fuzilava sempre que eu me atrevia a repetir. Ia parar entre as pernas de alguém mais velho que pudesse lhe dar cobertura. Mas ela era tão graciosa e espontânea durante aqueles poucos segundos em que ficava no ar, que terminou seduzindo meus familiares. Todos se divertiam à custa da pequena.
Não tardou a ensaiar poucas palavras. Mas entre os convencionais: papai, mamãe e até vovó, tinha também “tiano” – eu, no caso – e “balarina”. A safada gostava e já fazia doce. E eu a tomava como se fosse preciso usar a força.
Em poucos meses “Xixi” – apelido carinhoso, acredite - ficou mais durinha e seu corpo perdeu um pouco da graça naquele movimento. Ela não só controlava bem as pernas para o alto, como conseguia erguer adestradamente todo o corpo e corria. Evolução acelerada pelo mundo dos adultos.
Ela encontra muito mais os tios que seus filhos ou quaisquer crianças da sua idade. Por isso, de quando em vez sai com uma frase de efeito. Sabe diagnosticar quando tentam lhe enganar e é infinitamente mais esperta do que eu para conseguir doces. No último feriado aconteceu um almoço festivo para celebrar o natalício de sua avó. Fomos todos.
Minha irmã, que acredito ansiar por ter filhos também, bajula a menina o tempo inteiro. A ponto de levar pirulitos na tentativa de arrancar um sorriso. Um me foi ofertado por Gigi. Era envolto por um papel branco e verde claro. Recebi, mas era apenas um. E não pude deixar de pôr a prova seu desprendimento.
Pedi primeiro o segundo. Ganhei outro verde e branco. Depois, queria um amarelo. E ganhei o amarelo. Pedi então o roxo e ela começou a olhar para os lados. Estava no meio de uma roda formada por mesas, cadeiras e muita gente. Enquanto dava um trago da minha bebida, estendeu o roxo em minha direção. Recebi com as mãos e os olhos bem abertos. A essa altura eu tinha três unidades, e ela também.
Pedi o quarto doce. Ela me veio com outro amarelo. Sabia que não iria muito longe e pedi o cor-de-rosa. A psicologia infantil deve explicar o motivo pelo qual as meninas têm essa preferência. A mim, bastava saber que aquele pedido iria ultrapassar a barreira da sua boa vontade. Ela olhou outra vez para os lados. O rosa eu vou chupar, disse tentando defender seu preferido. Insisti. Ganhei apoios. Todos queriam ver até onde ela iria.
Passaram-se uns trinta segundos e ela me deu. Em retribuição, lhe regalei todos os meus. Para segurá-los, ela usava as duas mãos numa reza. E seguiu em direção a minha irmã, que piscava o olho dando a dica. Era como dizer que me entregasse que ela teria ganharia muito mais. E foi assim que sua bolsa se abriu, mostrando um saco repleto de baganas. Já era depois do almoço e todas as guloseimas estavam permitidas.

sábado, 24 de maio de 2008

Desencontros e re-encontros

Era pra ser mais um encontro furtivo, apenas sexo. Por isso, vestiu-se de um de seus personagens. Fantasia que servia de subterfúgio na hora da conquista. Largava mão de ser mais natural e sedutor para barbarizar até sendo julgado pelos olhares mais libertos. Fatalmente deixaria rastro e gosto de bis. No outro, mais.
Ela foi vista ao longe, caminhando no sentido contrário da direção do seu carro. Tinha um estilo juvenil de se movimentar e vestir. Blusa listrada, moderadamente divertida, e jeans. Exalava um frescor que tinha no fundo os tons adocicados de baunilha e crepe de limão. Não poderia ser do tipo que fica por cima e deixa os olhos entreabertos enquanto geme.
Percebendo os faróis, voltou-se para ele e caminhou. Passos ligeiros. Parou adiante. Esperou abrir a janela do carro que tinha um fumê escuro. Vendo que não houve manifestação, segurou bem a maçaneta e levantou. Acabara de ser destravada. Sentou-se. Ao lado, nenhum gesto desejando boas vindas.
Ele estava verdadeiramente incomodado com sua presença. Com sua saúde e vigor. Pensou várias vezes em milésimos de segundo em gritar, expulsando-a. Conteve-se achando que poderia seduzir a jovem, aproveitar-se da sua libido e aumentar a coleção de conquistas.
A garota viajada escolheu um bar de paredes alaranjadas, com dardos, sinuca e uma mesa de poker. Nada mais sentar, pediu uma Stella Artois e propôs um brinde singelo: saúde! E seguiu primeiramente perguntando mais que falando de si. Cercava o território e seguia os passos daquele discurso com ares de emancipação. Sabia atrair as atenções e chegou a ser cortejada por um par de jogadores. Provocou. Mas reações não foram externadas.
A conversa foi regada por mais três garrafas. Depois de duas horas as portas começaram a ser baixadas. A ele faltava coragem de sair dali para um território mais privado, pago por hora de permanência. Entraram outra vez no carro, que girou em círculos pela cidade antes de parar de frente para a portaria do seu prédio, onde aconteceu um beijo clandestino.
Ele rolou na cama espaçosa. Dormiu pouco. E ligou bem cedo. Propôs um novo encontro. Sem armas, sem enfeites. Estava envolvido e tinha ganas de tomar dois tragos de vodka. Sendo ele, só assim se sentiria encorajado para deitar com ela. E o fez. Com corpos postos na horizontal e orvalhados, riram e sujaram os lençóis.
Ela foi deixada no portão. Não o beijou, nem ligou depois. E, tratado como um corpo, ele sentiu-se vitorioso pela primeira vez. Descobriu que o desejo maior de um corpo é tão somente ser abraçado.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Os últimos dois anos e meio da vida de Fernando

Primeiro acreditou. Amou sem titubear. Teve medo. Foi traído. Descobriu. Perdoou. Não esqueceu. Enfrentou. Caminhou. Sempre lado a lado. Foi traído. Malogrado. Descobriu. Trancou-se. Quis terminar. Não entendeu. Aceitou. Preparou o café. Levou com cuidado. Chorou pitangas. E passou a ter mais zelo. Foi traído. Descobriu. Decidiu terminar. Deixou passar o tempo. Enxergou novas possibilidades. Provou delas. Gostou delas. Gozou delas. Enjoou delas. Dispensou-as. Viu seu desejo cruzar o semáforo. Com luvas e guarda-chuvas. Cortou o sinal. Encostou ao lado. Fez novas experimentações. Aos poucos. Trancou-se numa redoma. Perdeu o tempo. Tornou-se vulnerável. Acelerou. Esqueceu o breque. Entregou-se. Foi traído. Descobriu. Perdeu qualquer resquício de moralidade. Age como um fescenino. Seu corpo pede trégua. Quer massagens. Mensagens. Sinais. Consegue sempre. Realiza-se com a paisagem. Frisa. Grava. Ganha o dia por apenas um momento. Todos os dias. Fica satisfeito com pouco.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Bem de perto

Só tem duas coisas que eu odeio mais que inhame. Comer inhame pela manhã ou comer inhame com ovo frito pela manhã. Mas minha mãe chegou hoje no meu apartamento com duas rodelas generosas e o argumento de que ela e meu pai, que fazem o desjejum todos os dias com esse banquete, não pegam sequer gripe há tempos.
Ela deve estar vivendo uma parada alternativa. A medicina oriental é que vêm defendendo o inhame para fortificar os gânglios linfáticos, os postos avançados de defesa do sistema imunológico.
Por primeiro tive de me recompor do susto que foi vê-la se movimentando pela casa às sete da manhã, enquanto eu cantarolava pelo corredor dos quartos em direção à cozinha. Imaginava minha tapioca com queijo de coalho, bem amanteigada. Depois, fingi ter comprado aquela idéia de saúde e bem estar.
Dona Nize guarda uma técnica antiga. Quando ela sabe que a escalada vai ser difícil trata de vir munida com cordas, fitas tubulares, cordeletes de cinco milímetros de diâmetro, mosquetões com rosca, botas, costura e de quebra um regalo tipo uma bandejinha com fundo de azulejo pintado à mão da última viagem. É assim desde que eu dei meu primeiro berro. Ponto pra ela que tem conseguido me dobrar com tanta astúcia.
Inspecionou os ambientes mais cercanos como a área de serviço e a dispensa. Apontou falhas de limpeza e organização bem na frente de Lucimar e chegou a reclamar da quantidade de manteiga colocada na frigideira. Nesse aparte tive de concordar que se ela vem fazendo isso há pelo menos um mês eu já devo estar gozando meus últimos dias, com o colesterol aos picos.
Foi-se depois que eu sentei para começar a comer. Mas não sem antes anunciar sua chegada amanhã , quando virá para ensinar a fazer o melhor filé ao molho madeira que eu já provei, com não sei que quantidade de suco de laranja e vinho de uva syrah.
Que salada! Ou seria cilada? Sim, sim. Em todo caso, essa história vai continuar. E qualquer semelhança com o post anterior não é mera coincidência.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Como um patriarca

Invertemos os papéis. Não que meus pais hoje sejam meus filhos. Nem que eu tenha de me preocupar com o plano de saúde deles. Mas, há pouco mais de um mês minhas atenções se voltaram para a vida dos que moram distante duas ruas do meu apartamento.
Naquela casa onde passei minha infância, minha adolescência e onde, mesmo havendo harmonia familiar, percebi o quão é difícil aprender a viver em sociedade, hoje sobra muito espaço. E nem é apenas físico.
Há uns quatro anos, quando deixei de dormir e debaixo daquele teto, resistiam ali mais dois irmãos – que inclusive se parecem bem mais que qualquer deles a mim. Naquela época, minha rotina é que havia sido mais afetada. Tive de aprender a conviver com o silêncio, momentos em que me deparei sozinho com minha consciência e passei a me analisar e até condenar. Penas leves, claro. Eu aprendo fácil.
No meu espaço aprendi também a aproveitar bem cada ambiente. Como reflexo, até hoje não consigo conjecturar a possibilidade de voltar a ter uma televisão no quarto. Acho que é uma violência tão grande quanto ter um microondas em cima do criado mudo. Enfim, é pra isso que existem as cozinhas, salas etc.
Meus pais e meus irmãos mantiveram a mesma logística. De quando em vez tomavam café da manhã em horários distintos. Meu irmão mais novo esporadicamente sentava ao redor da mesa na hora do almoço. Comia o que ninguém tinha no prato. Cada um regulava seu jantar, graças às aulas, saídas noturnas e sem-vergonhices.
Botando banca, com ares de independência saindo pelas ventas, sempre acreditei que só poderia ir lá quando fosse convidado. Aquela não era mais minha casa, apesar de ter as chaves das portas no meu mói até hoje. Passei a comer em restaurantes rápidos e ganhei de quebra uns bons seis quilos. É aquela história, muita variedade, olho gordo.
Minhas visitas aconteciam mais na hora do almoço. Sempre foi conveniente, afinal é bom sentir o tempero da mama e, de quebra, ver todos de uma vez. Importante também participar das discussões que acontecem nesse momento. De um se meter na vida do outro por simples bem querer ou por hábito, por liberdade.
No veraneio também não tenho tipo muito como privar da companhia dos meus. Trabalhos e outras atividades inviabilizam a corrida para o litoral. De modo que passado o carnaval, fui a um desses almoços festivos. Minha irmã de casamento marcado. E dali a pouco, um mês depois, seu nome já tinha aumentado.
Minha mãe passou a me ligar mais. Como apenas dois quarteirões nos separam, aparecer por lá está mais fácil. Mas meu pai tem prolongado os papos ao telefone também. E quando me vê puxa uns assuntos estranhos, incomuns nesses mais de 20 anos.
No último final de semana eles ligaram pra me avisar que fariam uma viagem. Saíram quando tudo estava escuro, na quarta e a volta estava programada para o domingo. Era o casamento de uns amigos em São Luís.
Na sexta recebi outra ligação. Meu pai estava preocupado com o cachorro de 14 anos, caçula da família. Ele ficara só com meu irmão que mal cuida de si. Não devia ter água, tampouco comida. E a casa, com montes de caca e manchas de mijo.
Deixei um par de compromissos de lado para averiguar a situação, completamente outra, diga-se. O bicho não havia tocado na ração, nem bebido. Sem condições de qualquer excreção, óbvio. Trouxe-o para almoçar comigo, ele do lado da mesa, pulando no nosso colo, como sempre foi.
No meio da refeição, o telefone tocou outra vez. Meu irmão deu falta do Jheepy. Ligou para o meu pai num impulso - se tivesse parado pra pensar jamais faria isso por receio de perder o saco, enfim – e por isso o meu celular estava aos berros. Fiquei um pouco incomodado com tanta preocupação. Trouxe-o comigo, disse, completando que estava de saída para o trabalho e o deixaria de volta. Assim foi.
Tive uns minutos de responsabilidade sobre o estado emocional dos meus pais. Quando o ponteiro do relógio alcançou às seis horas da manhã do domingo estava eu passeando com o cachorro pela praça. Tive um pouco de dor de cabeça. Acho que de tanto gritar, já que pela idade ele está com a visão, o olfato e a audição prejudicados. Mas acompanhei com toda a paciência. Assim, cuidei do meu pai, que deve ter ficado mais sossegado e de minha mãe, que, sem ouvir queixas, provavelmente curtiu mais os dias fora.
Restabelecida a rotina, não me sai da cabeça a idéia de que eles estão tendo dificuldades em exercitar o desapego. Filhos os criam para o mundo. Mesmo sabendo que olhares analisam a mesma situação de formas diferentes, com mais ou menos experiência. Quiçá netos amenizassem esse problema. Pode estar por vir mais uma cobrança.

domingo, 18 de maio de 2008

Primeira parcial

Acordo novamente às seis horas da manhã e chego rapidamente à conclusão de que estou velho. A mesma cena se repete há mais de um mês. É como se eu tivesse a idade do meu pai e a falta de disposição de sair para tomar uma cerveja com meus amigos num dia qualquer, ou mesmo em um final de semana.
Lucimar já está acordada e me prepara um café. Hoje prefiro com leite e o bebo de frente para o computador. É como uma necessidade de auto-afirmação. De um ser que é diferente do seu genitor, que ainda lê o jornal sentado no sofá. Mudando apenas o canal parece que me vêm um ar de modernidade.
Mas nessa manhã, as notícias não chegaram até a máquina que agora uso para escrever esse registro. Nenhuma informação importante de fora do meu mundo de alguns metros quadrados onde me protejo dos temporais e quaisquer outros fenômenos climáticos. Assim espero.
A assinatura do serviço de internet está paga. O provedor idem. Tudo nos conformes não fosse o teclado do computador que amanheceu, para meu desconforto, com funções estranhas. Números ao invés de letras, o que me impedia de digitar corretamente a direção do sitio a localizar no espaço virtual.
Ligo para o Marcelo – um amigo que não sei como, consegue acompanhar as novidades tecnológicas com sede. Ligo imediatamente sempre que acontece algum desentendimento entre mim e o meu portátil. Em outra circunstância tal gesto poderia ser interpretado como tráfico de influências, já que, não conseguindo manter um bom diálogo, por vezes o trato como se ele tivesse de funcionar como um funcionário público. Mesmo sabendo que ele faz corpo mole e, pra me provocar, trava. Eu exijo sempre mais.
Ainda há o agravante desse benefício não servir apenas a mim, mas também ao meu subordinado, o que poderia, num julgamento nos aumentar a pena de reclusão - distanciamento vá lá! – da metade. Mas, enfim, desse modo convivemos.
Pacientemente meu amigo-técnico-conselheiro pediu para que eu reinicializasse – começamos sempre com o óbvio. Não deu certo, lhe disse, completando que se fosse tão simples eu mesmo teria resolvido.
Então vá até o painel de controle, depois escolha opções regionais e de idioma. Vai abrir outra janela. Está vendo a aba idiomas?
Sim.
Escolha ela, clique em detalhes e me diga o que aparece em idioma de entrada padrão.
Inglês – Estados Unidos (internacional).
Seu note book tem a tecla ç?
Não.
Então vamos reconfigurar, disse num tom de diagnóstico.
Mais alguns procedimentos e adicionamos e excluímos alguns serviços de texto e de teclado. Entrou Brasil (ABNT) e mais uma vez Estados Unidos (internacional). Depois de aplicar, por recomendação, reiniciei outra vez.
Não deu certo. E agora? Tem alguma outra opção?
Vamos ver se você fez tudo certo. Seu computador é um Vaio?
É, respondi.
Vou pegar então o meu, que é da mesma marca e deve estar configurado corretamente.
Fizemos mais umas quatro tentativas dentro do tempo de aproximadamente uma hora. Exausto, tendo ingerido mais duas xícaras com cafeína e quase em estado depreciativo, reclamei. Olha, ontem desliguei esse computador normalmente e parece que ele tem vida própria, amanhece o dia com enxaqueca. É temperamental demais pra mim. Já tentei digitar várias palavras e percebi que o problema atinge principalmente as vogais, que viraram números, comentei displicentemente.
Que vogais?
Deixe-me ver. Bom, o a é a mesmo. O e é e. O i agora é o cinco. O o, seis e o u, quatro.
No seu teclado tem uns números bem pequenos no canto direito de cada uma dessas teclas que você acabou de me dizer?
Pode parecer um contra-senso, mas eles estavam gravados em um amarelo discreto que ficava praticamente camuflado com o cinza do teclado. Sem meus óculos – que foram furtados juntamente com minha bolsa, outro dia enquanto trabalhava – quase encostei o nariz para conseguir ver os tais números. Tem sim, Marcelo, falei.
Então provavelmente você vai encontrar uma luz verde acesa perto de um número um, que fica dentro de um desenho que parece uma bolsa, no canto esquerdo, perto da saída de som. Olhei rapidamente e vi.
Gosto de precisão.
Agora procure na parte de cima uma tecla com as iniciais Num Lk. Você só precisa apertar lá.
Pela vigésima vez, procedi como me orientou.
A luz verde apagou?
Depois de um período de vacância, demorei uns cinco segundo para conseguir pronunciar, entre gaguejos, a extensa palavra de uma única sílaba: sim.
Agora veja se tudo funciona, disse do outro lado da linha.
Precisei de mais tempo para ver que funcionava, acreditar que funcionava, me perguntar se aquela uma hora perdida me faria falta, como deveria reagir para que não parecesse irracional, abstrair minha perplexidade. Repeti: sim.
Ouvi uma gargalhada e tive vontade de cortar os pulsos em asterisco. Ele se divertiu com a situação. Desligamos e decidi não mexer mais naquilo por 24 horas. Teria de me dar um espaço. Tipo recuperação. Saí arfando.
Preciso encontrar uma forma de criar alguma aproximação com esse universo tecnológico ou vou acabar, na verdade, como o meu avô, que pra mim é um grande exemplo de raciocínio lógico jogando buraco. Mas que não tem interesse, e, por conseguinte, nem iniciativa de tentar ampliar seu leque de relacionamentos.
Eu e meu computador já nos desentendemos outras vezes. Sempre quando eu mais preciso dele. Nessas ocasiões travamos verdadeiras disputas. Fazendo uma parcial, estou como o América na segunda divisão. Perdendo sempre e com receio de ser rebaixado outra vez.