sábado, 12 de julho de 2008

Olhos de chover

Naquela manhã de despedidas, saiu de casa com os olhos avermelhados de sono e tristeza. Havia bebido apenas um copo de leite na cozinha, encostado na pia, de onde era possível fitar os pés de Melissa deitada de lado no sofá da sala.
Na rua, esteve procurando por sua amiga mais íntima e sempre conselheira em momentos difíceis. Seguiu até sua casa e escutou ainda ao longe um barulho na escadaria. Aproximou-se e a viu descendo com uma mala de viagens cinza para dois. Percebendo que estava atrasada, desistiu de falar. Embargou as lágrimas no momento em que lhe deu um abraço e disse que estava tudo bem, que conversariam em outra hora quando tivesse passado o final de semana.
Andou em círculos pela cidade como costumava fazer quando a vontade era de congelar instantes ou simplesmente atrasar decisões difíceis. E assim ficou por cerca de uma hora. Vendo o tempo se acortinar em nuvens e embaçar seus óculos de sol.
Abriu a porta de casa e viu Melissa no mesmo canto, quase inerte desde cedo. Passou direto para o quarto. Bateu a porta e voltou a deitar. Ela veio ao seu encontro como se quisesse ferir. Entrou sem avisar, correu uma bolsa, pôs algumas roupas e quando foi sair estendeu a mão com um dvd, dizendo: assista quando puder.
No sofá, que estava com a espuma afundada dois centímetros pelo peso das lembranças, sentou-se. Colocou o volume alto, num número par, dedicado a saber qual a última mensagem daquela história.
Nas primeiras cenas, Briony Tallis ainda é uma menina e já mostra a que veio. Fala e anda com ares de prepotência. No andar, sempre passos e ângulos retos. Ela gasta tempos observando seu apaixonado e escrevendo peças de teatro.
Das conversas com a irmã mais velha no jardim, percebe o interesse comum pelo rapaz, filho de uma criada e que, para não fugir do folhetim habitual, teve a educação custeada pelos pais afortunados das duas moças.
Ainda é dia quando Briony se destaca na trama, conduzindo uma carta do jovem para a irmã e logo mais pegando o casal na biblioteca da mansão, ela de pernas abertas, os dois encostados em uma estante, sôfregos. E depois quando presencia o estupro sofrido por sua prima por um amigo do irmão e herdeiro de uma fábrica de chocolates.
Intempestiva, Briony consegue atrapalhar o romance que até então espreitava. Para afastar os dois, ela acusa o rapaz, dizendo tê-lo reconhecido na cena de violência. E ele é condenado às torturas da guerra. Em desejo e reparação, os reparos vêm no final, quando Briony aparece com rugas, dando uma entrevista para lançar seu vigésimo primeiro livro, o único autobiográfico da carreira.
Na obra, os amantes vencem o tempo, tão traidor quanto o Zenão de Eléia, e se encontram. Vivem juntos em uma casa num lugar longínquo, só possível de acreditar em uma fotografia antiga. Mas o final feliz só se realiza por ser imaginário e mais uma vez manipulado pela vontade alheia.
Vinícius estava sensível naquele dia que já avançava pela tarde sem hora para almoço. Ficou tocado, mas não chegou a se emocionar. Talvez por ter hábitos amadores de escritor e entender que as palavras podem, sem danos, ser instrumento das vontades e criar novas condições de existência.
Pensou em se apropriar poeticamente daquela narrativa. Metaforizar. Ligou o computador e quando iria começar a delinear o seu desejo por mudança, percebeu que um ícone se abriu, anunciando a chegada de um novo e-mail à caixa de mensagens.
Estava sozinho e não precisava fazer mise en scène. Mas não conseguiu lê-lo por completo. Abria e fechava os olhos como quem quisesse se perder e retomar de qualquer parte para tentar assim chegar a próprias conclusões. Foi numa dessas paradas que viu outra interpretação para o filme. Mais pueril até. Dizia que sempre há tempo para se pedir desculpas pelas tentativas de mudar o que o acaso uniu, usando todos os agravos da mentira. Era o primeiro texto que Melissa lhe escrevera. Uma carta anunciando um desfecho sofrível, com p.s. no final.

3 comentários:

Anônimo disse...

Olá Cristiano, faz tempo que não aparecia, mas valeu a pena. Uma alegria ler todos os posts daqui, cada um melhor que o outro. Já disse que gosto muito da tua escrita desprendida e ao mesmo tempo enleante?(hibridismo) rsrsrs...
Abraço!

Luis Fabiano Teixeira disse...

Concordo com a Glória. E digo mais: vc já está devidamente linkado ao meu blog. Se cuida, rapaz. Abração!!!

Anônimo disse...

Obrigado por Blog intiresny