quarta-feira, 30 de julho de 2008

A gente nunca esquece

Para Neila
Na minha infância bicicleta era uma geringonça formada por uma esquadria de metal, duas rodas e um guidão. Seria prudente que também tivesse freio pra minimizar os tombos, mas nem sempre havia. Na dos meninos não podia faltar bagageiro. E nas das meninas uma cesta na frente – que eu poucas vezes vi sendo usada, mas todas faziam questão. Desde cedo são voluntariosas. Vai entender as mulheres!
Eu aprendi a ter equilíbrio na vida e sobre duas rodas um pouco tarde. Já tinha uns dez anos quando encarei pra valer um passeio. No pneu de trás da minha bike, duas rodinhas menores, presas por parafusos e que me ajudavam a não cair. Tinham uma leve angulação e não tocavam a calçada de frente de casa – local dos meus treinos - todo o tempo. Assim, eu sentia quando estava usando-as e as minhas melhoras.
Uma semana dali, tirei a primeira. Estava mais confiante. Qualquer problema era só jogar o peso do meu corpo para o lado direito, o que ainda tinha suporte. Quando decidi ficar sem as duas sonhava em ter uma família margarina, com um pai que corresse ao meu lado e não me deixasse estropiar no chão. Mas eu nasci e o meu já beirava os 40. Seria muito àquela altura exigir isso. Nunca fui uma criança chantagista, que fique claro. Só aprendi essa artimanha depois.
Na minha infância bicicleta era uma das poucas brincadeiras. Nunca achei graça em ficar sujo, correr e rolar na grama com os outros pequenos. Tinha uma forma particular de me divertir e de quando em vez preferia ficar ao lado dos meus pais em rodas de adultos. Ao menos as histórias eram interessantes. Uma delas conta que meu pai remava na época em que morou no Rio. É engraçado. Ele nunca foi afeito a essas extravagâncias e da última que me recordo, com meu irmão mais novo, caiu errado, na quina da piscina no momento em que tentava acertar uma bola. Tal fato lhe rendeu uma cirurgia no ombro direito e uma cicatriz bem avantajada.
Sobre marcas eu também tenho entendimento. Já tendo a manha das pedaladas, apostava corrida com um primo da mesma idade pelas ruas do bairro. Perto de um supermercado era o nosso ponto favorito. A avenida era asfaltada e tinha uma ladeira de bar frio na barriga. Foi nela que uma vez parti na frente e quando cheguei pela metade, olhei pra trás pra ver se ele me acompanhava e trombei com um carro que estava estacionado. Foram alguns metros pelo ar e outros pela pista. E fui obrigado a ir à escola mesmo com o corpo e o rosto arranhados.
Ela era roxa e com a cela e uns adesivos em amarelo flúor. Ficou rota também e foi guardada por um tempo na garagem. Período que era pra ser curto, mas se prolongou até hoje. Minha bicicleta sumiu sem que ninguém visse. E eu entrei em desespero porque nem com o vigia da rua, que estava sempre dormindo, eu pude contar para ter qualquer informação. Na minha infância esse furto foi uma das primeiras desesperanças que conheci.
Uma amiga, entendendo que era seu melhor momento profissional, deixou filhas, cachorro e tudo mais que tem por uma temporada. Saiu da cidade para trabalhar. Fizemos, num bar, uma reunião com os mais chegados para a despedida e terminei por convidá-la e mais um par de pessoas pra um almoço no dia seguinte.
Ela não sabia bem, mas a idéia era fazer a partilha de suas coisas, ou de forma mais simpática, ajudar a cuidar de tudo durante a ausência de três meses. Um amigo que já deveria ter saído da casa da mãe ficou com o apartamento e responsabilidade de pagar as contas provenientes de seu uso. Outra que mora num espaço reduzido pegou pra si a incumbência de determinar a agenda festiva na nova locação. E eu fiquei com a bike. Profissional, cor de vinho, com amortecedores, umas tantas marchas e mais modernidades que nem sei usar.
Havia mais de dez anos desde a última vez que montara em uma bicicleta. Essa é uma digressão. Do verbo digressionar. Das conjugações da saudade. E é parte de uma retomada.

sábado, 12 de julho de 2008

Olhos de chover

Naquela manhã de despedidas, saiu de casa com os olhos avermelhados de sono e tristeza. Havia bebido apenas um copo de leite na cozinha, encostado na pia, de onde era possível fitar os pés de Melissa deitada de lado no sofá da sala.
Na rua, esteve procurando por sua amiga mais íntima e sempre conselheira em momentos difíceis. Seguiu até sua casa e escutou ainda ao longe um barulho na escadaria. Aproximou-se e a viu descendo com uma mala de viagens cinza para dois. Percebendo que estava atrasada, desistiu de falar. Embargou as lágrimas no momento em que lhe deu um abraço e disse que estava tudo bem, que conversariam em outra hora quando tivesse passado o final de semana.
Andou em círculos pela cidade como costumava fazer quando a vontade era de congelar instantes ou simplesmente atrasar decisões difíceis. E assim ficou por cerca de uma hora. Vendo o tempo se acortinar em nuvens e embaçar seus óculos de sol.
Abriu a porta de casa e viu Melissa no mesmo canto, quase inerte desde cedo. Passou direto para o quarto. Bateu a porta e voltou a deitar. Ela veio ao seu encontro como se quisesse ferir. Entrou sem avisar, correu uma bolsa, pôs algumas roupas e quando foi sair estendeu a mão com um dvd, dizendo: assista quando puder.
No sofá, que estava com a espuma afundada dois centímetros pelo peso das lembranças, sentou-se. Colocou o volume alto, num número par, dedicado a saber qual a última mensagem daquela história.
Nas primeiras cenas, Briony Tallis ainda é uma menina e já mostra a que veio. Fala e anda com ares de prepotência. No andar, sempre passos e ângulos retos. Ela gasta tempos observando seu apaixonado e escrevendo peças de teatro.
Das conversas com a irmã mais velha no jardim, percebe o interesse comum pelo rapaz, filho de uma criada e que, para não fugir do folhetim habitual, teve a educação custeada pelos pais afortunados das duas moças.
Ainda é dia quando Briony se destaca na trama, conduzindo uma carta do jovem para a irmã e logo mais pegando o casal na biblioteca da mansão, ela de pernas abertas, os dois encostados em uma estante, sôfregos. E depois quando presencia o estupro sofrido por sua prima por um amigo do irmão e herdeiro de uma fábrica de chocolates.
Intempestiva, Briony consegue atrapalhar o romance que até então espreitava. Para afastar os dois, ela acusa o rapaz, dizendo tê-lo reconhecido na cena de violência. E ele é condenado às torturas da guerra. Em desejo e reparação, os reparos vêm no final, quando Briony aparece com rugas, dando uma entrevista para lançar seu vigésimo primeiro livro, o único autobiográfico da carreira.
Na obra, os amantes vencem o tempo, tão traidor quanto o Zenão de Eléia, e se encontram. Vivem juntos em uma casa num lugar longínquo, só possível de acreditar em uma fotografia antiga. Mas o final feliz só se realiza por ser imaginário e mais uma vez manipulado pela vontade alheia.
Vinícius estava sensível naquele dia que já avançava pela tarde sem hora para almoço. Ficou tocado, mas não chegou a se emocionar. Talvez por ter hábitos amadores de escritor e entender que as palavras podem, sem danos, ser instrumento das vontades e criar novas condições de existência.
Pensou em se apropriar poeticamente daquela narrativa. Metaforizar. Ligou o computador e quando iria começar a delinear o seu desejo por mudança, percebeu que um ícone se abriu, anunciando a chegada de um novo e-mail à caixa de mensagens.
Estava sozinho e não precisava fazer mise en scène. Mas não conseguiu lê-lo por completo. Abria e fechava os olhos como quem quisesse se perder e retomar de qualquer parte para tentar assim chegar a próprias conclusões. Foi numa dessas paradas que viu outra interpretação para o filme. Mais pueril até. Dizia que sempre há tempo para se pedir desculpas pelas tentativas de mudar o que o acaso uniu, usando todos os agravos da mentira. Era o primeiro texto que Melissa lhe escrevera. Uma carta anunciando um desfecho sofrível, com p.s. no final.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Investindo em si (ou sobre como suportar as asperezas do tempo)

A sala é cor-de-rosa. Há querubins e serafins materializados ali. De cerâmica a maioria. Numa cômoda ao lado do sofá, numa prateleira ao largo do corredor que leva à cozinha e no passeio pra os dois quartos. Anjos que casam com orações bordadas em ponto cruz, emolduradas e postas nas paredes.
Por fora da janela, quatro bebedouros com água, açúcar e enfeites de plástico. Seis beija-flores se alimentam num bailado impressionante. E uma vez aberta a vidraça, invadem a casa para compor com o ambiente.
Não é o tipo de decoração que me agrada, mas é muito harmônico e não posso deixar de perceber o cuidado que teve em combinar estampas, em pôr as almofadas por sobre o sofá e até na cortina dos oratórios - usados durante a noite como quartos. O tecido amarelo e de franjas esconde fissuras e infiltrações.
As imperfeições estão por outras partes. Mas são escondidas por Janice. Há três anos ela tapa as rachaduras e buracos que se formam periodicamente. E enfeita com adornos barrocos com se quisesse fugir de um pesadelo.
Sobre maus bocados ela tem entendimento. O trabalho como agente penitenciária certamente não era com o que sonhava. Por causa dele, e para manter sua segurança, ela não queria ser entrevistada. Àquela altura da vida, beirando os quarenta, já tinha se acostumado com o choque de realidade que era sair do ofício e entrar no seguro abrigo. Mesmo que a proteção nem fosse tanta.
Seu sonho de ter um imóvel próprio estava fadado a desmoronar. Janice vive no bloco C de um condomínio com oito torres e 128 apartamentos, erguido sobre um alicerce frágil e com material de quinta em todo o resto. O quarto andar do edifício dela é o mais afetado. O que, na conclusão do laudo de perícia do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura, mais corre risco de cair.
Janice ainda nem terminou de pagar por ele e continua fazendo isso todo fim de mês. Vai ao banco que financiou a operação e quita mais R$ 153. Ao final de 15 anos deve ter o parcelamento terminado e conquistar em definitivo todos os direitos daquele contrato de arrendamento. Ela mexe comigo pelo simples fato de não ter esmurecido e ainda investido tempo, energia e sentimentos em seus projetos, durem o tempo que for.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Disfarces

Passaram-se cinco anos até que dois amigos se reencontram. Em um tinham aparecido os primeiros cabelos brancos, e na cabeça outro já quase não havia fios. Um tinha perdido o abdômen rígido conquistado nas classes de judô enquanto o outro deixou de lado uns poucos quilos indesejáveis. Desejados os dois eram. Agora por suas esposas e filhos.
Na mesa de um bar, o papo clichê de rememorações e digressões atropelando as falas. Os copos, na maior parte do tempo, quase vazios. Eram rápidos e dentro de pouco mais de uma hora estavam ligeiramente bêbados. Nostálgicos, alegres, de pileque.
Como nas noites de outrora, terminaram por encontrar o caminho do Mangueirão. A casa noturna nas entocas do Parque das Colinas, ao contrário, tinha mudado pouco. De atualizações só uma radiola de fichas na sala principal, os azulejos do bar e a variedade de drinques e as putas de dona Magali, claro.
Aliás, a safra era nova, mas permanecia com as mesmas características. Só havia duas meninas jovens, que àquela altura tinham se trancado nos quartinhos um par de vezes cada uma. As demais eram de meia idade. Usavam um vocabulário chulo e pinturas multicoloridas borradas na cara. Tinham o eterno ar de decadência dos bordéis que usam luz negra debaixo do céu.
Chegaram perto de Keith e fizeram a proposta ao pé da orelha. Ela topou, mas pediu espaço para mostrar seus dotes no palco. A eles e aos demais frequentadores. Era cortesia. Subiu no palco envolto por espelhos cortados e tirou a roupa sem frescuras, parando ainda no meio da música. Desceu sem ouvir aplausos e pegou os dois pelas mãos.
Sem roupas, nada mais abrir a porta deitou com as pernas bem afastadas num exibicionismo latente. Vinícius já estava sem conseguir esconder sua excitação dentro das calças frouxas de tecido fino. Marcos também sentiu desejo pelo inusitado.
Quando foi puxado pela cintura pela meretriz seu amigo já estava em pêlos. Sentiu um nervosismo abrupto e que iria brochar. Ainda vestido conseguiu disfarçar e cedeu a vez sem moléstias para ambos.
Keith sequer se mexia enquanto era tomada pelo vigor de Vinícius. Ele estava pro cima, na clássica posição do Kama Sutra, de costas para seu amigo, parado pouco mais de um metro dali.
Marcos ficou a admirar o corpo do companheiro ao invés do da acompanhante. Ele tinha a bunda mais lisa que a dela. E com as mãos menos calejadas do que na época da adolescência, começou a se masturbar. Assumiu-se voyeur. Os três gozaram juntos. E o desejo contido de Marcos foi parcialmente saciado. Sem levantar suspeitas.

Um passado bom

Na terceira gaveta de um armário que tenho no escritório do meu apartamento está guardada uma caixa vermelha e com um elástico branco que guarda por sua vez imagens antigas. Por causa do meu fascínio pela fotografia, muitas delas estão lá porque julgo que são esteticamente interessantes. Desconheço até a razão de algumas terem sido feitas. Outras são minhas. Fotos de infância principalmente.
Quando eu não sei o que está por vir, sento no chão, abro a tampa e me passa um filme. É puro hábito. Tão recorrente que já sei a sequência em que estão dispostas e seria capaz de apontar os detalhes mesmo se estivera de olhos vendados. No gesto repetido de hoje cedo, percebi a força do acaso. É uma fase de mudança e eu faço outra análise.
Veraneávamos, eu e minha família, em uma casa que tinha a árvore mais exuberante que eu já vi. Até hoje não sei bem do que se trata, mas tem folhas como as de um cajueiro, só que mais resistentes, e caule e galhos como os de um pinheiro, só que são tortos. É uma surpresa. Uma das maiores obras da natureza que eu via com esquisitice.
A árvore nascia no terreno lá de casa, mas só dava sombra pra o lado do vizinho. Ele pedia insistentemente pra que nunca cortasse e seguia fazendo churrascos sob. Eu era um menino franzino naquele verão do início dos anos 1990. De tão delgado acho até que ela nem se incomodava com minhas escaladas e o lar que construí ali. A casa da árvore. Que não tinha teto nem paredes e era dividida com dezenas de passarinhos.
Havia uma diagonal feita por sobre o muro onde eu me abrigava da chuva. Isso quando chovia de dia. Só tinha permissão de passar as manhãs e tardes naquele lugar. E foi numa dessa que eu arranjei de pegar os óculos de sol de alguém. Eram negros na armação de acetato e de lentes bem escuras. Grandes pra mim, mas com um cordão que prendia no pescoço em caso de qualquer escapadela.
A foto quem tirou foi minha mãe. Eu estava encostado numa parede. Com os cabelos aloirados do sol, a pele queimada, uma bermuda caqui, camiseta branca e os tais óculos. Ao lado havia um vaso de planta da minha altura. Hoje a impressão amarelada quase não deixa ver as cores que estavam lá. E a textura da maresia. Mas agora o olfato emocional me transporta ao período de pré-adolescente pelo cheiro da independência.
Dos ares de emancipação tenho mais referências dentro da caixa. Por exemplo, outra 15 x 21. Essa com verniz e marcas de digitais. Fica junto de outra que me revela menor que uma boneca que ficava ao lado da cama da minha irmã e eu roçando nela sem roupa. Está na ala dos gestos que já me envergonharam, embora hoje ache graça.
A foto foi tirada sem que soubesse. Até meio tremida ficou. Eu usava uma camiseta de tricô num tom de pastel. Estava numa festinha com os amigos da minha rua. Na certa, arquitetando uma travessura. Remete a época em que eu comecei a saber o que era guardar segredo. Tinha um pacto com um primo da minha idade, Raphael. Nós éramos cúmplices de um esquema pesado. Era crime mesmo. Dos poucos que cometi.
Na praça da rua de cima havia uma centena de eucaliptos altos e uma banca toda pintada de branco. Minimalista que chegava a parecer ingênua. Ao redor, o frescor das plantas. Dentro, pirulitos, jornais, álbuns e figurinhas e revistas.
Foi numa prateleira escondida que encontramos exemplares proibidos para menores. Entramos e saímos de lá várias vezes sem nem pensar que o velho da banca já tinha dado conta do que pretendíamos. A revista era pornográfica mesmo. A primeira que compramos tinha uma negra farta de tudo. E no interior, ela mesma, possuídas por três homens, em todas as entradas.
Em poucas semanas já tínhamos muitas delas. Todas sujas. Fotografias arruinadas com balões e falas censuradas em qualquer local público. Pelo grande volume, mudamos de esconderijo – sim, porque elas precisavam ficar em um local secreto. Achamos de colocar tudo embaixo do sofá da sala da casa dos meus pais. Era perfeito. Até o dia da faxina quando afastaram ele.
Meu pai me apanhou na escola e não deu nenhuma palavra. Na certa já sabia, mas reparou nos meus últimos minutos sem culpa cristã. Antes do almoço minha mãe me puxou no canto e me esbofeteou com gritos. Ela estava certa. E tive de entregar meu primo e agüentar o sarro dos amigos da rua sobre minha mãe ter ido falar com a esposa do velho da banca.
Depois veio uma nova fase. Estava pronto para entrar na universidade, saindo da escola. Foi lá que encontrei uma das minhas maiores aquisições: Gláucia. Eu usava dos mais variados subterfúgios para não ficar com ela no início. Gostava daquela idéia de ser conquistado e assim fui levando até que a vontade já era maior que meu ego. Foi uma história bonita de quase cinco anos.
Em Caicó, numa festa de Sant’Ana a gente levou uma surra de muriçoca. A foto foi feita a uma distância razoável pra não mostrar as potocas na pele como algumas das marcas daquela noite. Na impressão guardada, apenas eu, ela e meu primeiro carro, que tinha na mala um adesivo do gato Félix. A máquina ainda era de filme de rolo e eu nem sabia que existia photoshop. Pra enfeitar, pedi pra fosse revelada com margens brancas.
Quando eu saí dos bancos acadêmicos as imagens se tornaram um objeto de trabalho. São muitas as que vejo diariamente, as que comento, as que ignoro. Voltei a montar as pessoais em álbuns de papel e cantoneiras. Tenho planos de escrever nos cantos das páginas, só que venho protelando. Quiçá pela falta de tempo nesse período, ou porque eu não preciso verbalizar o que sei e é só meu.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Para sempre

Eu já acreditei que muitas coisas fossem. Até que relacionamentos seriam. Mas a vida vem tentando me provar que tudo se desgasta. E mesmo a catarse emocional do fim não consegue purificar a alma a ponto de que haja um recomeço. Sem lembranças, sem dar conselhos como uma forma de nostalgia.
Numa fase dúbia, minha metade crespa diz com um pragmatismo ora incômodo que tudo tem um prazo mais curto e é prudente saber aproveitar. A outra é mais romântica e quer acreditar insistentemente em ciclos e retomadas.
Um pouco mais rarefeito, acordei com o desejo de saber se essa imprecisão atormenta só aos que vivem momentos de conflito. E sem grande prejuízo para a verdade, perguntei a dez amigos se eles acham que algo é para sempre.
O menos emocional me surpreendeu. Disse que os sentimentos intangíveis são. E que tudo que seja palpável deve ser servido em doses homeopáticas. Outra que passa por uma fase mais conturbada acredita na tradição budista. É adepta da lei da impermanência, que antecipa de forma drástica o certeiro fim.
A mais verborrágica acredita na relação entre pais e filhos, no encantamento e na surpresa. Um que mora longe não expôs argumentos piegas quando revelou acreditar no amor fraterno. Uma das mais amadas por mim quer que bons momentos sejam arquivados para sempre. Ela divide espaço com as lembranças de outra amiga, que disse que as pessoas mudam e o melhor é guardar recortes.
A sétima acha que se é para sempre é um verdadeiro milagre. Outro respondeu: não. Uma que curte música eletrônica – e acho que expande a idéia de amor plural – disse que até o querer dela por alguém é mutante, logo o que existe é movimento. E mover-se provoca cansaço. E a que faz terapia, e não pede uma oportunidade de terapeutizar os mais maleáveis, acha que as coisas feitas em amor possuem vida longa.
Anotei tudo e resolvi eu elencar algumas coisas, que mesmo sem saber se serão eternas, gostaria que fossem.
Minha memória olfativa. O carinho do toque que sentia na pele durante as férias de 2004. As noites lendo poesia e bebendo vinho. A ressaca que não entorpece as vontades do corpo. A boca pastosa em dias de preguiça. As tardes de domingo nas dunas. O frio na espinha de ansiedade. O amor que tenho por minha mãe. O perdão que anunciei ter concedido. Um bicho de pelúcia que ganhei de aniversário e que de quando em vez puxo como se fosse rasgar. Os projetos ambiciosos demais que não arrisco tocar - que continuem sendo só projetos. Uma vida tranqüila. Algumas palavras que foram ditas antes de caírem as lágrimas. A crescente coleção de músicas que acredito que foram feitas pra mim. O relacionamento verdadeiro que construí e solidifiquei em um lar.
Há outras coisas. Mas as guardo em segredo. São ingênuas demais para serem compartilhadas sem vergonha. Quero continuar acreditando que ao menos um desses desejos, mesmo que ao acaso, possa se tornar real. E que meus amigos alcancem a mesma proeza. Até os que clamam por dinamismo, que consigam harmonizar a órbita e o centro estático de duas forças. Do que se é e do que será. “Tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo. O ser não é mais que o vir-a-ser.” (Heráclito).

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Das linhas e pontilhados (ou traços que anunciam a morte)

Era pontilhada. Como reticências. Não a via por sobre a sua cama, mas sabia que estava ali. Uma linha ameaçadora e que se tivesse dedos os apontaria para o seu rosto indagando sobre tudo o que deixou de explicar dentro dos últimos anos.
Apertou seu pulso com força e puxou numa diagonal que de tão certeira rasgou a blusa estampada de cetim ao lado da costura que levava ao braço direito e terminou por arrastá-la para o chão do asfalto quente. Com a pele do rosto rasgada e o ouvido no solo se assustou com o barulho tardio da buzina, uma freada brusca e o choque entre os dois veículos.
Era uma manhã de sol forte. Liara atravessava a rua distraída. Nas linhas aparentemente seguras de uma faixa de pedestre. Ouvia better together, do Jack Johnson, no seu Ipod. Música que lhe colocava em transe e concedia o direito ao sorriso sem disfarces, que capturava as gotas de suor que escorriam de suas têmporas.
Depois da queda ficou inconsciente por dois ou três minutos. Impacto daquela sensação de ser salva por um estranho, que sequer lhe esperara acordar. Queria agradecer pela mão amiga.
Depois do choque de realidade que foi ver a multidão ao seu redor - gente que estava ali por curiosidade e quem sabe até vibrasse contra sua vida só pelo prazer de ver representada diante dos olhos a violência das ruas a que todos estão susceptíveis – teve paragens. Começava a observar os avisos. Os horizontais, dos agravos do mar adiante. Os verticais e os outros que estão ao alcance dos olhos, mas por vezes são ignorados.
Já anoitecera e o gato ronronava por sobre o braço do sofá quando a porta se abriu. Ele chegou com sua maleta preta, os sapatos ainda empoeirados de um barro avermelhado e um apetite que nem de longe parecia com o dela. Enquanto lhe corroia as vísceras um desejo libidinoso, a ele só o estômago preocupava.
Abriu um tinto meio seco. Duas taças. Sugeriu um brinde e ouviu o tilintar, mas nenhum olhar foi lançado em sua direção. Ainda assim, deu o primeiro trago. Seguiu bebendo numa tentativa de conseguir ganhar coragem e ultrapassar a linha que os separava.
Servidos os pratos, sugeriu uma música. Ele aceitou, mas nem tantos acordes poderiam fazê-lo esboçar o que o desejo de Liara pedia. O que existia entre os dois era metade tédio, pelo simples contentamento de ter um abrigo seguro. E na outra metade havia preguiça.
A cama estava vazia quando ela acordou no horário de sempre. Não precisava de despertador. O vento frio batendo do lado direito do seu corpo já era um sinal de que ninguém estava mais ao lado. Fora sem sequer lhe dar um beijo de despedida. Era a rotina do trabalho, da falta de urgência, do conformismo.
Estava do lado certo do quadrado. Na parte que ainda lhe cabia. Sem invadir os espaços foi deixando que a inércia mudasse sua vontade de poder retomar a injeção motora daquela relação. Seu inconsciente refletia o discurso do outro.
Desenganada da vida saiu de casa com uma roupa leve. Foi correr. Pelo esforço, voltava a ter o peito acelerado e o corpo suando. Nas linhas daquela pista seu olhar cruzou com um que tinha a mesma mensagem. E talvez tenha se apaixonado, mas não foi suficientemente forte para alimentar aquela cria.
Em dez dias estavam num mirante, despedindo-se. E pela primeira vez, nos olhos dele viu lágrimas. Ficou inerte, sem coragem de tocar. Era um sentimento vultoso que beirava a margem do admissível, quase se encostando à loucura. Foi por ele que perdeu o controle e se aventurou nos dias em que combinaram de dormir juntos. Por ele também que parou para observar o vulcão, sem sentir medo ou tentar mais fugir.
Mas na paixão não existe segurança. O que sobra é muita expectativa. E dias como os dois separados podem significar o amadurecimento ou simplesmente romper com tudo. Se não é amor a distância se torna um impedimento.
Quando abriu a porta as coisas estavam no mesmo lugar. Mais de um mês havia se passado e tudo o que tinha sido conquistado até ali, permanecia. Liara chorou. Não porque estava sozinha e sentia medo de ter feito as escolhas erradas e logo teria de arcar com a agonia da solidão. Mas era extremamente desconfortável viver dois lutos de uma só vez.
Com as janelas abertas foi inundada por uma tempestade que encobria quase todo o trânsito. Olhou para baixo e se viu no meio da pista, no meio da chuva. Se estivesse novamente ali, mesmo sem conseguir controlar seus impulsos, teria usado o freio e esperado o mal tempo passar antes de seguir seu rumo. No vai e vem frenético do mundo o maior risco ainda é ser atropelado.