Como essa é uma carta de despedidas, vou saborear até sorver todo o ar do quarto e asfixiar os poucos desejos que ainda guardo. Começo falando de mim, do princípio. De quando eu entrei aqui sem arrastar correntes. Sem carregar o fardo da trouxa das desilusões. Vinha apenas com uma camisa puída na gola e com dois furos no peito. De um passado bem resolvido.
Não peço atenção ao falar. Sei que você para pra me ouvir. Aproveitar de uma voz mais experiente, mais calejada de histórias que só deram certo por algum tempo. Pois sabendo desse teu desprendimento, dedico uma última música. Opened once, do Jeff Buckley.
No ambiente em que estou há meia luz. Não é a mesma das noites de lua e mais quase nada. Mas é mais segura. Sinto-me confortável na minha casa, vendo as paredes com pouca cor, o banheiro com duas coisas de cada e o baú onde está guardado um edredom de tafetá para os dias de romance e chuva.
Se eu digo que me sinto bem, não se apresse como de costume, e vá achando que eu me esqueci de tudo. É que estou feliz com minha decisão de fazer isso, custe o tempo e as mazelas que causar. Faço confiante porque já me conheço e sei que minha memória seletiva só arquiva o que é preciso, pra não me encher a cabeça de idiossincrasias.
Das lembranças, inclusive, não tenho a de ter sido por sequer um dia grosseiro com alguém que já mereceu minha estima. Sem medos, digo que te tratei com muito zelo, inclusive mais do que deveria. Com carinho até. Poderia recordar do meu polegar brincando na comissura dos teus lábios. Mas se hoje me arrependo desses excessos é pelo arbitrário jogo provocado para medir forças que debelaras enquanto eu continuei a te querer com disciplinados exercícios de oratória.
Sei que, contudo, você ainda jogará a responsabilidade do fim sobre minhas costas, com todo o peso que minha escoliose não suporta. O que não sei é se merecerei mais uma vez sua lágrimas, mas eu, fatalista que sou, prefiro acreditar no acaso. Não quero te punir com o poder de rusgas quase conjugais. Prefiro que se lembre de mim com a mesma doçura que havia na sua meia-voz quando pedia pra que eu te pegasse por trás com mais força.
Acho que já usei esse texto em outra ocasião, mas aquilo que eu fazia era cena. Fui sincero apenas em alguns momentos, mais delicados, como quando introduzia meu dedo indicador bem de mansinho pela beirada de sua peça íntima, tocando os glúteos. Quando eu te beijava também era muito verdadeiro. E nos momentos em que me deixava ser içado como se me submeter a todos os perigos fosse uma espécie de redenção.
Dos nossos cafés agora só resta o pó. Umedecido. Entorpecido. Parece que te vejo me fitando de olhos esbugalhados enquanto eu falo as maiores infâmias só pra impressionar. E você, jovem demais, sem conseguir dizer nada com os hiatos da gagueira. Mesmo tento aproveitado muito bem, sua juventude me cansou em alguns momentos.
Há muito tempo deixei de acreditar que a gente dá e não espera nada em troca. Você me deu muito, é verdade. Encheu-me de coisas das quais nunca precisei. Não queria conhecer teus pais, nem ir ao casamento do teu irmão, nem tampouco ter de viajar não sei quantos quilômetros pra isso. Não era assim que eu iria acreditar que o que você falava do alto dos seus 21 anos era verdade. Precisava de outras garantias. Eu sempre acreditei no nosso sexo e nos nossos sorrisos sincronizados. Mas era isso contra o todo o resto. E no fim eu percebi que a equação era desigual.
Você ainda vai encontrar tantas outras assim. E, mesmo sem que me peças, digo: não te desesperes. Os conflitos mais interessantes são como os dos Madrigais Privados de Eugenio Montale. Ele teve seu nome posto pelo ser amado em uma árvore e em retribuição batizou um incêndio na floresta com o nome dele.
Volto a dizer que essa é uma carta de despedidas e, portanto respondo as últimas perguntas que me fez para aniquilar, desde já, qualquer motivo para outra conversa. Farei sem me apegar aos teus compromissos familiares, claro.
Recebi sim tua mensagem, perguntando se eu queria ficar com você pra valer. Recebi também a que revelava que por causa da ausência de resposta você estava desistindo, concordando comigo, dizendo que eu venci. E a que mais tarde, durante a madrugada, pretendia me acordar, quem sabe pra tentar remediar o que foi dito num impulso juvenil.
Li tudo. Tudo depois de eu ter dado um basta nessa situação e lhe comunicado de tal gesto. Consegui isso graças a teus reflexos, tuas ironias, teus descasos. Obrigado pelos momentos bons, por me ajudar a esquecê-los e adeus.
Ilustração: Aureliano Medeiros
*Texto feito ondas quebrando em rochas, num ir e vir com mais força. Tirei daqui tempos atrás e agora publico novamente por me parecer a lua descabida. E as palavras leves demais. Publicado na revista LivingFor.