Gosto de muitas coisas no meu ofício. Mas quiçá a melhor delas seja a oportunidade de conhecer e conversar com pessoas diferentes e contar suas histórias. Em época de eleições, com políticos e pseudo-propostas em cena, minha equipe tem preferido conhecer o outro lado, o do eleitor.
Laila estava no Instituto de Reabilitação de Cegos do Rio Grande do Norte. É professora da quarta série de uma sala com quatro alunos de idades variadas. Ela tinha passado uma atividade e estava quieta no birô quando entrei falando um pouco mais alto que de costume, como se não soubesse que eles pela ausência de um sentido têm a audição mais sensível.
Depois de uma apresentação rápida comecei a perguntar, e a receptividade era evidente. Aos 29 anos ela pareceu uma jovem muito serena. Branca, estatura mediana, articulada com as palavras, de gestos contidos, cabelo curto partido pro lado esquerdo que cobria parcialmente um buraco na cabeça. Marca da cirurgia para retirada de um tumor no cérebro há quatro anos. Foi depois desse procedimento que veio a seqüela e ao redor tudo ficou escuro.
Hoje ela consegue ver alguns vultos, dependendo da luminosidade do ambiente. E tem outro diferencial: sabe ler em braile, o que não acontecia quando das últimas eleições municipais. Naquele ano a mãe ajudou conduzindo até a seção e indicando onde estavam os números. E ela votou.
A participação no pleito era o objetivo da minha reportagem, que foi motivada pelo Tribunal Regional Eleitoral que baixou a resolução 15/2008, disponibilizando uma linha telefônica na Corregedoria de Justiça, a fim de facilitar a solicitação de pessoas com dificuldades de locomoção e idosos para mudar do local de votação. É um adendo a lei eleitoral, que já previa essa transferência, mas que antes só podia ser feita via cartório.
Laila já passou por um período de adaptação, duro mesmo pra quem tem bom astral. Agora sabe se virar sozinha. Usa de quando em vez uma bengala quando não conhece o espaço onde está. E assim não deixa de participar de nada. Eu gosto de gente. E tê-la conhecido foi uma beleza.
Mas naquela mesma tarde também bati um papo com o presidente da instituição, cego de nascença. Ele começou a falar e no meio do pensamento truncado de tantos comparativos soltou uma palavra que me causou estranheza: videntes.
Ele se referia as pessoas que possuem o sentido da visão. Eu desliguei daquela entrevista imediatamente e pensei que não me sinto assim. Vidente no meu pequeno enteder é uma pessoa que consegue ter premunições.
Depois perguntei alguma coisa sem sentido, gaguejando em dois momentos, na tentativa de disfarçar o tempo em que divaguei. Mas saí de lá convencido de que a gente vê pouco, com ou sem deficiência. O vidente nada mais é que um termo usado por mim e por ele pra se referir a alguém que enxerga mais que nós. A idéia é a mesma.
Furos em um papel só dizem que ele não serve pra escrever. Mas pra Laila e tantas outras pessoas aquilo é instrumento de comunicação tal como minha caneta, o meu computador. Da mesma maneira que os cegos gostariam de enxergar com os olhos, eu, que assumidamente também gosto de tato, queria ver com os dedos. E tocar da pele ao pensamento.
sábado, 23 de agosto de 2008
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2 comentários:
Lindo texto!
"Tenho olhos tristes, / Imperceptíveis, / Íris miúdas. / Os cegos têm olhos virgens / Já não podem ver os mísseis. / O mundo do toque é menos cruel que o abrir de duas janelas, todos os dias". Escrevi isso há muito tempo, no auge de uma dessas guerras em que os EUA sempre fazem parte. Imediatamente o seu texto me remeteu ao meu. Gostei muito da maneira visual e humana com a qual você abordou a sua crônica. Já dei aula para duas pessoas, assim. Foi uma experiência incrível, levarei lições para o resto da vida. Obrigado pela visita. Abração
P.S. A Fenac, em tempos de Bienal do Livro, sempre tem umas promoções imperdíveis.
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