terça-feira, 5 de março de 2013

Horizontais


Uma régua descansada sobre a mesa de trabalho, uma trena usada para medir novas cortinas. Fotos amareladas, com toda a família espremida nos cantos, querendo estar naquele registro. O mar na minha janela. Todas as formas hoje se resumiram a uma e vejo tudo horizontal, com a lente de aumento da contemplação que só a distância oferece.

Os dígitos pares são os meus preferidos, das divisões iguais e do sentido de compartilhar sem qualquer vantagem. Por isso mesmo um número ímpar de anos nunca me apetece comemorar, mas ainda esses aniversários são como uma espécie de marco regulatório, um ponto para pensar, uma sombra para sentir coisas que a memória vai gastando pelo caminho.

Depois da última semana de muito trabalho e noites incompletas, uma epifania: hoje é o dia de lembrar de uma década, do tempo em que deixei a casa dos meus pais e a mesa sempre posta. Um grito de independência, como todo, de isolamento. A busca de um espaço importante para ouvir silêncios e fazer novas leituras.

Sou, de três, o filho do meio dos meus pais, o que ouve Bach e rói as unhas, como costumeiramente repito. Mas que agora não vê mais motivo para assanhar os cabelos, já que as unhas estão sempre roídas.

Crescemos sob as mesmas influências. Tenho a impressão de que poucas individualidades foram percebidas nos tempos de criança. Fomos preparados para fazer as mesmas escolhas e ter o mesmo fim, o que poderia ser melhor do que é, mas apenas não foi. Ao invés do excesso, minha inclinação acontece invariavelmente pela ausência.

Pouco conversamos sobre nossas diferenças. Éramos adaptáveis e nos faltava comunicação, por assim dizer. Havia uma mulher extremamente dominadora, fazendo escolhas e tomando decisões, e um pai que nada tinha de herói.

Pode ser duro, mas eu nunca quis ser igual a ele. Bastava que tivéssemos semelhanças físicas. E ele ter me dado o próprio nome, fazendo de mim um ser composto. Virei Cristiano Félix como qualquer José Inácio e João Antônio, sem nunca ter ganas de usar um sobrenome. Não pensei no mesmo formato de família, sequer na mesma profissão. Por outro lado, acho que já fiz todas as outras conjecturas e, para mim, escolher o ofício do pai, aceitando os riscos de repetir e da comparação inevitável, é um ato de extrema admiração. Isso não existia.

Era quase hora do almoço. A varanda tinha as mesmas cadeiras brancas e o jardim ao redor um verde que só é possível encontrar quando é regado nas primeiras horas da manhã, quando se madruga. Duas doses, uma de cerveja e uma de uísque e veio a proposta meio acanhada. Meu quarto naquela casa, que parecia aumentar de tamanho, continuava vazio.

Faz quatro anos dessa história surgida durante uma visita de cortesia. Vou à casa dos meus pais como frequento a de qualquer amigo e deito os meus olhos, pra me deixar maravilhar. Eles agora são avós, o espaço volta a ter uma criança fazendo barulho e algazarra e eu sinto cada vez mais vontade de ter esse mesmo frescor juvenil, um filho, ser admirado por alguém, mesmo sabendo que isso nem sempre acontece de pronto.

Aliás, hoje acho que também cheguei a outra conclusão. A data do aniversário pode ser a mais feliz e pode não ser. Posso receber telefonemas e comemorar. Ou não fazer nada disso. Quando se tem amigos por perto qualquer dia pode ser surpreendente. E é melhor que seja assim. 



Dos anos 1980, com meu pai e Catharine, minha irmã.

3 comentários:

Anônimo disse...

Talvez você seja um número primo.

Anônimo disse...

Agora, é certeza. Você é número primo de fato, sendo o filho n°. 2, o único par que é primo.
A questão é: você é primo simbolicamente?

Unknown disse...

Algumas datas são uma oportunidade de reedição do coração e da alma. A família, a nossa primeira mesa posta, ao mesmo tempo que nos molda, nos apara arestas e nos permite os borrões que tornam nossa personalidade única. Saber-se ou não saber-se, sentir-se parte ou não sentir-se... Incógnitas supremas que nos assaltam nesses momentos de introspecção e análise. Assim, o fato de contar os dias, sejam semanas, com a segunda-feira que sempre começaremos a dieta e o exercício prometidos; sejam os meses, que se demarcam pela percepção dos salários; sejam os aniversários, que nos lembram da nossa finitude humana, ou sejam os réveillons, que nos levam a renovar tantos votos e metas não cumpridas, leva-nos sempre à visitação do poço de nós mesmos. Os números são invenção humana. Apenas ainda não sabemos se para o bem ou para o mal.
A vontade de ser pai é a manifestação final da nossa admissão em não sermos eternos. Queremos desesperadamente continuar a viver, mesmo que em outro corpo, em outro coração. Não há garantias de admiração e retorno. Ser pai não passa por aí tão somente. Creio que esse desejo se permeie da consciência madura de poder dar amor, um amor gratuito. Reeeditar-se como humano, admitir-se capaz de amor fora das estruturas confusas dos sentimentos que vivenciamos pela adolescência e vida adulta jovem.
E esse amor terá um quarto, e você porá a mesa e irá querer guardar cada momento em retratos, que ficarão num canto da casa, cumprindo seu papel de materializar e tentar congelar a felicidade.
Eles poderão amarelar, assim como nós próprios amarelamos pela vida, enquanto roemos unhas e percebemos que os cabelos assanhados já não são mais um charme pueril que nos seja pertencido.
A vida tem suas belezas em cada fase.
Ser diferente daqueles que lhe partilham o sangue, ser semelhante àqueles que escolhemos como amigos são nuanças de nossa relação coma a vida. E ela é cheia de possibilidades.
Mesmo que atrasado, feliz aniversário. Apesar de tudo, sempre há motivos para se comemorar. Nós próprios somos um milagre.

Abração. Lindo texto o seu.