terça-feira, 5 de maio de 2009

Corrida úmida

Já não sei se é melhor que chova ou dias de sol. Nos pontos de ônibus as pessoas parecem tentar escapar de um naufrágio. Depois de um mês de férias parece que havia esquecido o que é o trânsito de uma cidade. Pior é saber que não existe nenhum lapso. Passei por ruas movimentadas e vi carros parados no horizonte semaforizado enquanto caminhava por outras calçadas. Mas elas não era iguais.

Tudo parece caótico. Procuro compensações. Conto o tempo por músicas. Troco a pressa por canções. No meu carro levo um álbum de Jussara Silveira, Teresa Cristina e Rita Ribeiro. São Três meninas do Brasil. Tudo ao vivo, sem o tempo métrico das gravadoras. Da quinta faixa do álbum – de onde prefiro começar a ouvir – até a décima são quase quinze minutos.

Mais quinze, só que anos atrás, eu conseguia sair de casa, em Candelária, e chegar ao Salesiano, na Ribeira, no mesmo quarto de hora. Naquela época ouvíamos no rádio o noticiário da manhã. Não sei quanto isso dá de tempo em poesia, mas a coisa variava de treze até dezoito minutos. Dependia de quão espaçados estavam os pensamentos do meu pai.

Nunca foi bom contador. Parecia querer ser, tanto que não sei quantas vezes ouvi causos da construção do canal do Baldo e da utilização das águas do Potengi. Eu via mais interesse nos olhos que nas palavras dele. Eram contemplativos, assustados e coniventes com as transformações. Só que não podiam sonorizar. E também por isso temos memórias diferentes.

Com minha irmã havia discussão todas as manhãs. Disputávamos o espaço no banco da frente, numa época em que o cinto de segurança incomodava minha coluna e amassava a farda. Era, portanto, dispensável. Aquele local não tinha importância apenas por dar pra ver correr o olhar do meu pai sobre as ruas já cada vez menos esvaziadas, mas pra perceber os momentos em que havia mais risco, nas paragens, quando, sem palavras, sabia que ele encontrara algo novo naquele trajeto diário. Nesse momento sentia o limite dos meus dedos no freio de mão. Já conhecia sua serventia.

Aquela mulher de lenço no cabelo e cigarro queimando por fora do vidro estava assim desprotegida no início do dia, pouco depois das sete. Foi o que me fez lembrar o caminho até a escola. Distração como a do meu pai não se aceita num congestionamento em quase zona de conurbação. Rejeito a idéia, acelero e deixo o ruído dos pingos abafar por completo meu desejo tão disparatado que não tenho condição de dar-lhe forma.

Pela manhã é melhor encarar como um sortilégio poder contar quilômetros em sons. A distância percorrida até o trabalho talvez não seja um terço da dos tempos de estudante, mas me ocupa a mesma calma do relógio.

Do lado de fora as pessoas também mudaram. Faces puídas e quase-roupas. Na minha sala de aula, as meninas já vestiam calças. Mas nas horas de lazer levavam trajes de avós: meias até os joelhos, saias, blusas com mangas compridas e gola alta. Era uma moda diferente. Agora até mesmo esperando o transporte público elas mostram brilhos, fendas. Algumas aceitam transar na vertical. Sexo anal, oral, sem compromisso, sem culpa.

Pensar que tudo isso pode ser por causa da pressa. Do tempo no asfalto, gasto.